Brasil: o país onde é proibido enterrar os mortos com dignidade

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

“Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida”


(Chico Buarque e João Cabral de Mello Neto)

O trecho acima é do poema musicado por Chico Buarque de Holanda de João Cabral de Mello Neto, intitulado “Funeral de um lavrador”. Chico fez a trilha sonora e musicou a montagem dirigida de Morte e Vida Severina, de onde “Funeral” faz parte. A obra de João Cabral foi escrita entre 1954 e 1955, publicada neste último. E a montagem feita pelos alunos da PUC São Paulo em 1965, sendo premiada em festivais, como o de Nice, na França.

O texto fala de uma nordestina que vem para a cidade grande e sua saga como migrante, que sonhava com uma vida melhor e, em especial, um pedacinho de terra para plantar e viver. Mas as contradições de uma sociedade, onde muitos não tem nada e poucos têm muito, reservam a pequena cova no cemitério sem, na maioria das vezes, o direito a velar ou até enterrar.

Na ditadura militar, não se despedir dos mortos assassinados pelo regime era comum. Até hoje milhares de famílias sequer sabem onde estão os corpos de seus entes queridos. O Estado Brasileiro, responsável por estes “desaparecimentos”, nunca se responsabilizou, de fato, em esclarecer o que aconteceu com estas pessoas.

A primeira vez que ouvi falar nos mortos e desaparecidos, foi no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, “Feliz Ano Velho”, lançado em 1978. A obra que recebeu inúmeros prêmios foi vendida muito no Brasil, em especial os jovens como eu, na época, correram para comprar a autobiografia do Marcelo e de sua família.

O que chama a atenção na narrativa é que todos os fatos, acontecimentos e reflexões do jovem Marcelo Paiva giram em torno do desaparecimento de seu pai, em 1971. Na época, período mais duro e violento do regime, o então deputado Rubens Paiva é preso pelos órgãos de repressão e jamais voltou para casa. Recentemente, durante sessões da Comissão da Verdade, fórum para debater as atrocidades da ditadura, surgiu a informação de que o deputado teria sido morto e jogado ao mar.

No livro, Marcelo Rubens Paiva se queixa de não poder ao menos enterrar seu pai, de lhe prestar uma última homenagem. E uma participação no extinto “Programa do Jô”, na Rede Globo, o escritor reclama que não sabe o que é ficar de luto, pois não teve esta oportunidade.

Em 1989, a Prefeitura de São Paulo descobriu em no distrito de Perus que em seu cemitério havia, no mínimo, 100 valas cujos ocupantes foram considerados anônimos. Ao analisar as ossadas, concluíram ser de militantes de oposição a ditadura militar, que mortos eram jogados nos buracos como indigentes.

As famílias destas pessoas até hoje não conseguem saber o que é luto, tamanha a violência praticada contra elas, que foi – e ainda é – a proibição ao direito de enterrar seus mortos.

Na última terça feira, 2 de Novembro, foi o Feriado de Finados. Neste dia, os brasileiros costumam ir aos cemitérios visitar e prestar homenagens ao seus entes queridos que estão em outro plano. A tradição faz com que este gesto também seja a continuação do luto e uma forma de preservar a memória dos que partiram.

No Brasil da triste era bolsonarista, o luto tem sido constante. Diferente da ditadura, onde ele não existia, agora ele é institucionalizado por Bolsonaro e sua trupe de neofascistas. Mas um luto forçado, prematuro e tão violento que o provocado pelos generais e suas botas nos 21 nos de escuridão e terror.

A normalização da morte, encampada pelo governo, como algo que vai acontecer a todos, porque é vontade divina, emporcalha e deixa um cheiro de sangue no ar, levando sim ao genocídio. Os mais de 600 mil mortos pela Covid-19 denunciam a irresponsabilidade do Estado Brasileiro, que para defender conceitos atrasados que beneficiam aos que têm vil metal, espalhou por todo o País a ideia de que não tem importância o que está acontecendo.

Como não tem importância a morte prematura pela fome, que já assola mais de 23 milhões de pessoas? Como não tem importância o luto em vida de uma chefe ou um chefe de família que, ao perder o emprego, imagina que pode colocar em risco a vida de seus filhos?

O luto prematuro é encurtado pela pandemia. Poucas horas para se despedir e um grupo reduzido de pessoas. Este luto é diferente quando as mortes são naturais ou de uma doença ou um acidente. Este luto é patrocinado por um grupo que vem destruído o Brasil, com sua politica negativista, de promover a morte em vida. Temos o sagrado direito de ficar em luto com liberdade, esperando o fim deste desgoverno.

A todas as famílias que perderam seus amados e amadas para o vírus, para a fome ou para a bala, meus sentimentos.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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