Armas, violência, fome ou livros e comida?

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

Em minhas memórias, as quais um dia quero escrever por inteiro, um dos fragmentos que não sai de minha mente diz respeito à infância. O ano era 1969, o Brasil vivia o início do período mais duro e cruel do golpe militar civil empresarial de 1964. Amigos sumindo e notícias de torturas e mortes passa a ser normalizadas no País como política do Estado repressor e autoritário.

As mínimas garantias de justiça ao cidadão já não existiam mais, habeas corpus, direito a defesa e por aí. A dura, como dizia Chico Buarque, aparecia sem avisar no meio da noite e levava a socos e pontapés para lugares nunca revelados.

Passaram a fazer da paisagem, do dia a dia, tanques de guerra, metralhadoras, soldados fardados, desfilando pelas áreas urbanas das cidades.

Era comum políticos, empresários e militares discursarem a favor da tal violência necessária, na famigerada guerra suja, contra o comunismo que comia criancinha, que destruiria a família tradicional brasileira e por aí vai.

Toda esta carga emocional propagandística incutia na cabeça dos adultos a ideia armamentista. Mesmo o meu pai, um operário pobre, um homem da paz, determinadas concepções inconscientes ou não fizeram parte ou não de suas ações.

Assim no Natal de 69, com pouca grana e o costume da época, eu e meu irmão ganhamos cada um tanque de guerra de plástico e minha irmã Gisele, uma boneca. Lembrei do primeiro discurso da ex-ministra de Direitos Humanos de Bolsonaro, que disse que meninas usam rosa e meninos azul. Ou seja, aos homens armas, às mulheres, as panelas, o tanque de roupa e a cama. Esta concepção, mesmo com o fim da Ditadura, ainda perdurava no meio de muita gente.

Em 2005, o Senado Federal aprovou a realização de um referendo em todo território nacional para aprovar ou não o artigo 35 do recém-aprovado Estatuto do Desarmamento.

O que dizia o artigo: “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei”. O referendo estava previsto e tinha, inclusive, data marcada no próprio Estatuto do Desarmamento.

No dia 23 de outubro de 2005, a população acima de 18 anos e em dia com a justiça eleitoral foi às urnas para decidir sobre a questão. A pergunta era simples: o comércio de armas e munição deve ser proibido no Brasil? O Sim era para aprovação, o não por manter como estava.

Lembro que a sociedade se dividiu. As esquerdas, progressistas, defensores de Direitos humanos, pelo Sim. Empresários, a direita e a extrema direita, parte do judiciário e outros pelo Não. Em um clima de debate franco, aberto e saudável, a campanha se desenvolveu em um clima democrático e de paz.

Mas, infelizmente, com a insegurança e a ineficiência dos órgãos de segurança do Estado, muitos deles repressores, o Não venceu com mais de 60% dos votos. Apesar da permanência da comercialização de armas de fogo, a legislação continua rígida em relação a posse e muito mais ainda o porte delas. Era difícil comprar uma arma. Mais difícil, ainda, legalizá-la.

Uma outra questão é que os governo até 2016 eram favoráveis à cultura da paz e ao desarmamento. Mesmo assim, a violência e as mortes por armas de fogo tinham índices enormes no País, colocando a nudez a fragilidade de nossos órgãos de segurança, muitos deles envolvidos com o crime organizado, em especial as milícias do Rio de Janeiro.

Apesar disto, poucos se arriscavam a defender a flexibilização do comércio e do porte de armas. Mesmo o governo golpista de Temer não arriscou a defesa indiscriminada das armas. O tema se escancara e volta com tudo nas eleições presidenciais de 2018.

O então deputado federal Jair Messias Bolsonaro, defensor nato de torturadores e ditadores, apresentava quase como a única proposta armar a população até o dente. O discurso se baseava no direito de ter armas e de portá-la onde quisesse. Bolsonaro propunha um novo velho Oeste ou uma legislação que permitia a compra a vontade de revolveres, carabinas, fuzil e por aí vai.

Naquela campanha, o principal argumento de Jair, para o armamento do “cidadão de bem’, era que, com isto, teríamos a diminuição de crime e assassinatos por armas de fogo, no Brasil. Os números não comprovam isto. Em 2021, já na Presidência, Bolsonaro flexibilizou a compra, a posse e o porte de armas.

No decreto e outros que se seguiram, um cidadão comum teria direito a ter até 60 armas, do tipo de quisesse, e os atiradores de clube de caça (CACS), 30. O Exército, e não a PF, é quem determinava autorização par mais que o mínimo exigido. Só para se ter uma ideia, no mesmo ano da flexibilização, constatou-se pelos próprios órgãos públicos um aumento de 24% nos homicídios praticados por armas de fogo. Muitos pelo tal cidadão de bem.

Durante a campanha de 2022, Bolsonaro voltou a defender armar a população. Em um dos discursos disse: “Um presidente que cada vez mais fala da legítima defesa, que não quer desarmar o seu povo, muito pelo contrário. Esperem acabar as eleições. Todos jogarão dentro das 4 linhas da constituição”, declarou.

Em todas as falas terminava com o slogan utilizado inclusive oficialmente pelo seu governo: O Povo Armado, jamais será escravizado.

Uma das primeiras medidas do Governo Lula, já em sua posse, foram decretos revertendo a flexibilização de Bolsonaro, e recentemente a legislação que dificulta a compra, a posse o porte de armas. Retira do Exército o comando do processo e retorna a Polícia Federal a responsabilidade. Diminui a posse e restringe o porte. Regulamenta o funcionamento e importância das CACS e dos clubes de tiro.

O Bolsonarismo e os armamentistas gritam contra as medidas. Protestos frustrados e fracassados foram organizados, mas com pouca ou quase nenhuma repercussão. Mas os danos, prejuízos e o perigo da flexibilização, ainda estão pressentes.

Recém documentário do Globoplay, do diretor Paulo Ferreira, mostra uma experiência do diretor em adquirir armas de fogo, ele um desarmamentista. Um tiro no escuro, entrevista, atiradores, caçadores, políticos e outros sobre o assunto. Recomendo.

O dilema está no debate: ARMAS, VIOLÊNCIA OU COMIDA NA MESA E PAZ?

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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