Judicialização da saúde

Por Edmar Silva
           
Judicializar uma questão significa levar ao conhecimento do Poder Judiciário uma situação controvertida entre duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, a fim de que haja solução definitiva do problema. Assim, judicialização da saúde consiste em levar demandas específicas da área da saúde ao conhecimento do Poder Judiciário, que, sem possibilidade de esquivar-se, ficará incumbido de resolver a celeuma em caráter definitivo.

            O tema já é antigo, mas continua a provocar interessantes debates e com frequência surgem situações inéditas, que ensejam acaloradas controvérsias entre os especialistas, seja da área jurídica, seja da área da saúde.

            Tudo isso porque a saúde está prevista expressamente na Constituição Federal (CF) de 1988 como sendo um direito social e fundamental (art. 6º) e por isso é considerada um direito de todos e um dever do Estado, devendo ser garantida mediante acesso universal e igualitário às ações e serviços que visam efetivá-la (art. 196).

            Diz, ainda, a CF que cabe tanto à União, Estados, Distrito Federal e Municípios os cuidados com a saúde e assistência pública (art. 23, inciso II), sempre observando as diretrizes da descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (art. 198, incisos I, II e III, CF).

            Se não bastasse, o texto constitucional prevê que o Estado pode executar as ações e serviços de saúde de forma direta ou por meio de terceiros, pessoa física ou pessoa jurídica de direito privado (art. 197, CF), bem como que é livre a assistência à saúde à iniciativa privada, surgindo, assim, as operadoras de planos de saúde.

            Em resumo, é possível dizer que o ordenamento jurídico prevê a saúde como direito fundamental de todas as pessoas, sem qualquer distinção, e existe a possibilidade de que os serviços que visem efetivá-la sejam prestados tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada.

            Em face desta universalização da saúde, de um lado há os cidadãos exigindo no máximo seu direito à saúde e, de outro lado, diante da escassez de recursos financeiros e materiais, há o poder público e, não raras vezes, as operadoras dos planos de saúde negando ou restringindo atendimento, serviços e até remédios.

            Neste contexto, nascem os descumprimentos de obrigações por parte dos responsáveis pelos serviços de saúde e, consequentemente, a questão é judicializada, pois o paciente, que neste cenário também é consumidor para todos os fins legais, vê-se tolhido de um direito fundamental e que, via de regra, necessita ser suprido com urgência.

            Ocorre que a judicialização, embora possa resolver o problema de certa pessoa por meio de um ação específica, de forma indireta ela pode prejudicar a coletividade, na medida em que o cumprimento da ordem judicial tende a gerar gasto não previsto de antemão pelo poder público ou pela operadora de saúde, embaraçando as ações e serviços de saúde dos demais cidadãos ou clientes.

            Em outras palavras, uma decisão tomada pelo Poder Judiciário visando o benefício do paciente que ingressou com a ação judicial tem potencial para prejudicar o sistema coletivo de saúde.

            Por isso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou grupo de trabalho específico e passou a elaborar estudos e apresentar normas referentes ao tema ora analisado. Em um primeiro momento, o CNJ orientou os magistrados acerca da necessidade de envolvimento da comunidade médica, científica e dos gestores públicos para resolução de demandas sobre saúde (Recomendação CNJ nº 31/2010). Após, foi instituído o Fórum Nacional da Saúde, cuja missão primordial é fornecer subsídios e informações técnico-científicas aos profissionais da área jurídica. (Resolução CNJ nº 107/2010).

            Pretende-se, assim, a capacitação dos profissionais do direito nas demandas envolvendo a saúde, a fim de que as controvérsias sobre o tema sejam abatidas no nascedouro, principalmente por meio das orientações jurídicas prestadas tanto pela Defensoria Pública/Advogados quanto pelo Ministério Público, evitando que a questão chegue ao Judiciário.

            A problemática da judicialização da saúde, portanto, não se trata de algo singelo a ser resolvido. Pelo contrário, depende de uma atuação conjunta e integrada de vários órgãos e autoridades do setor jurídico, da área da saúde, do meio político e das entidades sociais. Além disso, a redução dos seus impactos não parece ser algo imediato ou de curto prazo, mas sim fruto de uma conscientização paulatina de todos os envolvidos. O CNJ iniciou as ações com tal objetivo e a esperança agora é que, cada vez mais, os tribunais estaduais sigam a mesma diretriz e até aprimorem as medidas já existentes, tudo a fim de mitigar os impactos decorrentes da judicialização da saúde.

Edmar Silva é analista jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo. Formado em Direito, aprovado pelo exame da OAB-SP e pós-graduando em Direito Público.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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