Gênero nas telas

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

Se formos voltar no tempo, talvez não tão longe, início deste século, a palavra gênero sequer era mencionada com frequência, quiçá geraria debates e polêmicas. Após a ditadura militar, movimentos de mulheres e feministas arriscam a levar a conversa mais profunda para organizações da sociedade civil.

Na época, os sindicatos foram os primeiros a receberem a pauta, com palestras, cursos, materiais escritos e mais tarde audiovisual. O mundo sindical brasileiro é composto até hoje por homens, com exceção de categorias onde mulheres são predominantes.

E mesmo em diretorias com mulheres na composição, é raro vê-las em cargos de destaque, como presidência ou tesouraria, por exemplo. Mas este vazio de participação não ocorre só em sindicatos.

Usando de um raio-X, podemos conferir que esta situação ocorre nos Tribunais de Justiça, nas associações classistas, em direções de empresas corporativas e por aí vai. Não é à toa que o desnível de inclusão no básico da sociedade é gritante. Só para ficar na questão dos salários, para ser bonzinho a diferença entre homens e mulheres ultrapassa a margem de 20%. Se a mulher for negra, esta porcentagem aumenta consideravelmente.

Além disto, a cultura machista, patriarcal e misógina excluí ainda mais as mulheres, adicionando a isto a violência física e psicológica. Mas lá nos idos dos anos 80 e 90 do século passado, grupos de mulheres emponderadas iniciam discussões de políticas públicas em relação a este assunto.

As cotas, primeiro em partidos e entidades da sociedade civil, depois incorporadas nas demais instituições públicas e privadas. Ainda não chegamos ao ponto de ter garantias por meio da cotização da participação das mulheres.

Ainda temos um Congresso forrado de homens brancos e ricos, mesmo os governos, os mais progressistas, não chegam a 50% de mulheres em sua composição. No famigerado mercado econômico então é um horror. Mas nas artes o debate sempre foi mais aberto, transparente, sem amarras.

Um curtametragem, um dos primeiros sobre o assunto, foi o clássico Acorda Raimundo, como Paulo Beti e Eliani Giardini. O filme mostrava o operário Raimundo, um dia, ao acordar e ver sua realidade de macho alfa mudar – quem dava as cartas no relacionamento, quem sustentava a casa não era mais ele, era a mulher.

Depois destes muitos foram produzidos longa metragens, curtas, séries, minisséries e por aí afora, no Brasil e no mundo.

A Televisão Brasileira foi uma das pioneiras no assunto, quando a rede Globo lançou em 1980 o seriado Malu Mulher. Mas vai ser neste século que gênero toma forma, vai para sala de aula, para tribunas de juízes, políticos, empresários, na rua e, claro, nas telas.

Nos quatro anos de Governo Bolsonaro, a cantilena fascista e machista afastou o debate profundo sobre o assunto e descaracterizou uma discussão política por um fundamentalismo religioso dos mais torpes e ignorantes.

Mas as Artes não caíram nesta e continuaram produzindo obras maravilhosas. Hoje decidi sugerir quatro séries de plataformas digitais que assisti nos últimos dias. São duas produções espanholas (aliás, eles estão superando neste assunto o resto do mundo), uma italiana e uma americana. Vamos a elas:

Intimidade

Disponível na Netflix, a obra de 2022 traz para início de conversa um dos melhores trailers de suspense que já assistimos. Uma produção espanhola tem mostrado a mesma qualidade de filmes anteriores daquele país, como “As Telefonistas”, por exemplo. Aqui o protagonismo é todo ele das mulheres, elas não são apenas vítimas, elas são sujeitas de sua História e vão à luta.

O enredo traz uma política tendo sua privacidade violada ao circular pela internet um vídeo, onde ela se relaciona sexualmente com outro homem. Não só sua carreira, mas sua vida pessoal vai ser destruída, pelo machismo, pela misoginia.

No entanto, o que a vai salvar é conhecer outras mulheres violadas da mesma forma e que precisam ser ouvidas, que ao contrário dela não tem a visibilidade e o poder que ela. Uma série onde a luta coletiva toma corpo e solução para o combate à exclusão e a violência às mulheres. Dá se a impressão de que teremos uma segunda temporada. Mas enquanto não sabemos, sugiro saborearem esta obra magnifica.

Machos Alfa

Outra produção da Netflix, e também espanhola. Um detalhe bem importante é que seus dez episódios trazem 30 minutos de duração cada um, em um ritmo de adrenalina que nos faz pedir mais capítulos da produção. Aqui o protagonismo é de quatro homens, brancos, até que bem-sucedidos financeiramente e orgulhosos de suas vidas.

Até que situações peculiares de cada um vai lhes tirar a tranquilidade e coloca em xeque a macharada que eles sempre acharam que eram. Embora protagonistas, são as mulheres que apontam os caminhos dos descaminhos de quatro amigos envoltos a cultura sexista e patriarcal.

Para eles, é vergonha mulheres sustentarem homens, mulheres cobrarem amor e carinho do parceiro, bem como trair é uma instituição “legal” para homens e por último o falso companheiro compreensivo, mas que manipula com o psicológico. A produção é uma deliciosa comédia, nos faz rir o tempo todo. Mas nos faz relacionar em uma lista a podridão de um mundo de identidade masculina, envolto no controle do sexo oposto. Bem legal.

As leis de Lidia Poet

Produção Italiana, disponível na Netflix. Novamente o suspense e a aventura se misturam ao debate de gênero, em uma cada vez mais frequente no cinema nos dias atuais. Baseada em uma história real, é ambientada na segunda metade do século XIX.

A Itália unificada segue a tendencia republicana e alguns avanços vão ocorrendo, como a abertura das universidades públicas as mulheres. Elas podem estudar. Lidia Poet se forma bacharel em direito, mas é proibida pela ordem dos advogados de exercer a profissão. O motivo é o fato de ser uma mulher, e para os machos alfas e brancos, tribunais de justiça não é lugar para quem veste saiais.

De certa forma, a luta de Lidia, uma mulher linda de classe abastada, que foi educada a ser esposa de alguém, nos remete ao debate de cotas como forma de reparação de uma injustiça. Lidia Poet rompe com o que queriam para ela e nos coloca um outro debate o do empoderamento feminino. Fantástico.

Porque as mulheres matam

Produção veiculada na Globoplay, é uma serie americana. Um estilo bem comum no cinema de crítica social e de debates é a junção da comédia e do drama.

A fórmula tem dado certo, pois não tem carregado muito as produções com o drama e nem tem deixado tão leve a ponto de neutralizar o pano de fundo dos roteiros. O título desta série de 2019 já é ao mesmo tempo bem-humorado e enigmático.

Mas mulheres matam?

Em nossa sociedade, é ao contrário, recente pesquisa feita no Brasil, informa que a cada 1 minuto uma mulher é estuprada no Brasil e quatro morrem por dia violentadas inclusive dentro de casa. Mas a ficção nos faz viajar, por cenários muitas vezes imaginários.

Nesta série, no momento com duas temporadas de 10 episódios cada uma e duração de 50 minutos cada, o inusitado se apresenta. No entanto, a sopa de assuntos de gênero se apresenta a todo o instante. O adultério masculino nos anos 60, a AIDS e o preconceito nos anos 80 e as drogas e a liberalização sexual no século XXI, compõem a primeira temporada.

A segunda, ambientada em 1949 no pós Guerra, mostra a divisão de classes sociais, a gordofobia, o sentido de humanidade e claro o Machismo. Interessante.

Bom, desejo a todas as mulheres do mundo muitas lutas e para muitas conquistas ainda.

Bom final de semana.

João Geraldo Lopes Gonçalves é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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