A juíza Cynthia Torres Cristofaro, da 23ª Vara Criminal da Barra Funda, na capital paulista, condenou um advogado acusado de ofender a dignidade e o decoro de uma promotora pública por meio de racismo (homofobia). As ofensas contra a representante do Ministério Público (MP), que é homossexual, ocorreram durante uma sessão de julgamento do Tribunal do Júri.

Na ocasião do júri, o advogado defendia agentes de segurança acusados de executar duas pessoas e, durante o debate, de acordo com a denúncia, ele teria proferido discurso de ódio. “Sem qualquer discussão a respeito da opção sexual dos envolvidos no processo e, agindo com intuito claro de segregação à orientação sexual e à identidade de gênero de pessoas que integram o grupo vulnerável de lésbicas, gays, homossexuais, bissexuais e outros, teria discriminado a referida comunidade, proferindo discurso de ódio”, consta nos autos.

No início de seu discurso, o advogado mencionou sobre “a hipocrisia da Justiça brasileira e que o presidente mudará a situação do país. Tudo tem que ser respeitado, que não tem nada contra opções sexuais das pessoas, mas a família é primordial e precisa ser preservada. Precisa haver limites”.

Em seguida, ele se dirigiu à promotora e citou: “não sabe da sua situação, se é casada, que vê uma aliança na mão esquerda, que não sabe se tem filhos ou não”. Na continuidade, ainda conforme os autos, afirmou que era fã da Rússia e do presidente Putin porque “lá não tem passeata gay. [… ] Vai ser gay lá na Rússia para ver o que acontece. […] a democracia da Rússia é a democracia que eu gosto. Precisamos de amor à pátria. Amar o Brasil, fazer com que a família cresça novamente, papai, mamãe, filho usando azul, filha usando cor-de-rosa, depois se o filho quiser mudar para cor-de-rosa o problema é dele, se a mulher quiser mudar depois para azul o problema é dela, mas não influencia a criança, é isso que eu sou contra”, consta em trechos da sentença.

Para o MP, o advogado cometeu dois crimes: um deles previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89 (Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) e o outro no artigo 140 do Código Penal (Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro). “Ademais, teria ainda ofendido a dignidade e o decoro da promotora de Justiça que atua perante o Egrégio Tribunal do Júri há 17 anos, cuja opção sexual é pública e notória, por todos conhecida, fazendo menção à aliança que ela usava em um dos dedos e comentando que acreditava que a família deveria ser preservada, com intuito claro de ofender diretamente a promotora de Justiça, a qual faz parte da comunidade vulnerável”, consta na denúncia.

DEFESA
Citado, o advogado negou a prática dos delitos e afirmou que não tinha conhecimento que a promotora homossexual. Ele disse que considerou que os jurados do caso eram conservadores e escolheu como técnica fazer crítica às ocorrências a que fez menção que considerou ofensivas à sua religião (católica), mas disse que não criticou a comunidade LGBTQIA+ como um todo. “Elogiou-os em todas as suas falas; referiu-se à própria idade no sentido de dizer que se passasse a ser homossexual seria problema seu; não disse de modo algum que rejeitaria seus filhos se fossem homossexuais”, consta na defesa.

Ainda sobre a promotora, citou que ao ver a aliança na mão dela, disse que percebeu que ela era casada, que não sabia se ela tinha filhos ou filhas, mas que não queria que um de seus filhos fossem tratados como havia sido a filha de uma das rés no julgamento anterior (a garota chorou e foi retirada da sala após falas da promotora contra uma das rés).

Por fim, o advogado descreveu que suas falas não foram dirigidas à promotora e demonstravam quem ele era (conservador de direita e católico), na intenção de conquistar os jurados.

DEPOIMENTO DA VÍTIMA
Em juízo, a promotora confirmou que, durante o júri o réu, sem que houvesse qualquer relação com os fatos, começou a fazer colocações a respeito da população LGBT. Disse, também, que sua homossexualidade é fato notório, pois casou-se em 2014, correram proclamas, houve publicação no Diário Oficial e desde junho de 2019 começou a aparecer em eventos oficiais do Ministério Público apresentando-se como membro LGBT do órgão. “Sempre acreditei na visibilidade como arma para evitar preconceitos e estigmas negativos”, citou.

Quanto ao dia do crime, comentou que não respondeu às primeiras considerações do advogado e voltou em réplica dizendo aos jurados que não discutiria questões que não diziam respeito ao processo. “Na última fala da defesa, o réu retomou o assunto, insistindo em associações negativas, dizendo que lésbicas não poderiam aparecer diante de crianças por serem má influência […]”, completou.

A promotora afirmou que se sentiu fortemente tocada e que, mesmo cansada de ouvir piadas depreciativas, conseguiu se manter serena. “Quando terminou o julgamento, na sala secreta, havia uma jurada professora de Direito, que já tinha tentado levantar a mão para fazer perguntas, que perguntou por que o advogado ficou falando de parada gay, de coisas assim; respondeu que era para desestabilizá-la por ser lésbica, não conseguiu se controlar e começou a chorar. Por conta do ocorrido resolveu encerrar sua carreira no júri após 17 anos, 11 anos no 2º Tribunal do Júri; não suportaria não suportaria mais participar de julgamentos com o réu como advogado”, consta nos autos.

JULGAMENTO
A juíza acolheu parcialmente a denúncia e reconheceu o crime de homofobia, rejeitando a injúria. “Quanto ao mérito, a pretensão acusatória merece parcial acolhida, uma vez que a prova dos autos demonstra com clareza a confluência de os elementares do delito de racismo [homofobia], que se configurou consumado, sendo clara a tipicidade dessa conduta, não havendo dúvidas quanto à autoria, não verificada qualquer excludente. Embora em tese típica a conduta de injúria como imputada, dela não concorre prova suficiente”, decidiu.

Mesmo diante da negativa do réu, a juíza mencionou na sentença que as falas dele foram homofóbicas. “O sentido das falas do réu é claramente homofóbico: associou [e associa ainda, mesmo em suas manifestações no curso do processo, mesmo em seu interrogatório judicial] a homossexualidade ao perverso e ao pernicioso, ao desvirtuamento da família, à corrupção de crianças, ao desrespeito a símbolos religiosos. Faz isso ao mesmo tempo em que faz afirmações de respeito do tipo ‘não tenho nada contra’, as quais, no entanto, sua fala como todo desmente. Confunde performances artísticas com pornografia, estabelece generalizações indevidas, silogismos defeituosos. Essa conduta do réu não é permitida. Mais: é criminosa. Trata-se de discurso de ódio. A tipicidade do crime de homofobia é constitucional. É dada pela previsão constitucional dos direitos fundamentais da pessoa humana como bem jurídico protegido. E não cabe exceção pela imunidade profissional. Pouco importa se a conduta do acusado foi animada por estratégia de defesa que concebeu ou por simples verborragia ou por qualquer outra motivação: o réu desfiou falas preconceituosas e ofensivas a pessoas integrantes do grupo LGBTQIA+ e principalmente a pessoas homossexuais, usando de generalizações e associações francamente negativas”, continuou.

O advogado foi condenado à pena de três anos reclusão, em regime inicial aberto, substituída por prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas pelo mesmo período, de uma hora por dia de condenação, e por prestação pecuniária de 20 salários mínimos a ser paga a fundo público do Estado de São Paulo ou da União que se dedique à defesa dos direitos da população LGBTQIA+. Cabe recurso e ele pode recorrer em liberdade.

Foto: Pixabay

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