Por Joice F. Pio
A sociedade, quanto a sua composição, precisa de alguns elementos que normalmente são: pessoas, território e uma organização social que podemos denominar a grosso modo como “governo”. As pessoas formam grupos e esses grupos formam a sociedade. Percebemos essas definições desde a Antiguidade. Em Roma, por exemplo, durante a República, a organização social era formada por patrícios, nobilistas, plebeus e escravizados, no qual a posição social era definida pela posse de terras, mas nem todos possuíam direitos.
Ao falar da Grécia antiga, observamos uma organização social rígida, no qual o conceito de cidadania estava restrito a uma minoria da população, Nessa época, apenas homens inseridos no governo eram considerados cidadãos e os demais grupos não tinham direitos, como escravizados e mulheres.
Ao adentrar as civilizações e seus escopos sociais, podemos afirmar que algumas pessoas eram consideradas pertencentes a sociedade, e outros não, mas afinal o que é ser cidadão? O que é preciso para ser pertencente à sociedade?
Atualmente, ser cidadão se caracteriza em indivíduo que possui direitos civis, políticos e sociais garantidos pelo Estado e desempenha deveres, podendo ser homem e mulher indiferente da posição social, mas nem sempre foi assim.
Nos exemplos da Antiguidade citados, percebemos que apenas os homens eram considerados cidadãos e a eles cabiam o poder político e econômico; em contrapartida, constatamos que muitos grupos foram silenciados, pessoas que não tinham ascensão social, não possuíam direitos e, se possuíam, eram mínimos, de forma, que faziam parte da engrenagem, mas não eram vistas como tal.
Ao entender o início da estruturação social e visualizar as novas de formas de escravidão, percebemos que os grupos que foram silenciados no início da história (mulheres e escravos) são ainda os que possuem maior vulnerabilidade quanto exploração sexual e ao tráfico humano, assim este artigo visa retratar esse contexto assustador em nossa sociedade.
O processo de escravidão serviu como base econômica de muitas culturas, mulheres e escravos, passaram por séculos de silenciamento, de exploração, tendo seus corpos e almas violados, para as mulheres a ideia central de sua existência se estabelecia em gerir e cuidar do lar, dos filhos e do marido, infelizmente carregamos essa história de luta, submissão e vulnerabilidade.
A escravidão, apesar de ser abolida oficialmente, ainda acontece em todo mundo, agora denominada como escravidão contemporânea. Esse crime possui variantes e alta complexidade, tendo como formas de apresentação o tráfico humano e a exploração sexual.
Ao falar de tráfico humano e exploração sexual, identificamos que o início da estruturação social e os grupos que não possuíam direitos são os mesmos que atualmente são vítimas, ou seja, mulheres.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o tráfico humano define-se como “recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaças ou uso da força ou outras formas de coerção de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração”.
Assim, essa prática consiste no ato de comercializar, escravizar, explorar e privar vidas, tornando-se uma grave violação aos direitos humanos.
Os dados globais demonstram que 70% das vítimas são mulheres e meninas, principalmente para exploração sexual. Essa prática abominável representa o terceiro crime mais rentável do mundo, movimentando cerca de 32 bilhões de dólares por ano. O Brasil, é considerado uns dos maiores “exportadores” das Américas de mulheres e crianças para a indústria do sexo nos países de primeiro mundo, fatos cruéis de serem expostos e vivenciados.
O Brasil, além de ser “exportador” de mulheres, também representa um intenso tráfico interno, conforme pesquisa realizada em 2008 pelo Instituto Winrock Internacional. O Estado da Bahia mostra queda sistemática da idade média de crianças exploradas sexual e comercialmente, sendo comum encontrarem-se crianças de nove anos de idade nessa situação. Ainda referente a pesquisa que cobriu as cidades de Salvador e Feira de Santana, constatou-se que são os turistas estrangeiros os maiores consumidores dessas crianças e adolescentes de ambos os sexos. Os estrangeiros representam um percentual de 17,9 % dos casos, ao passo que os turistas brasileiros somam 43,6% deles. As pessoas locais — também brasileiras — compõem os restantes 38,5%.
Além dos grupos pautados no silenciamento histórico de anos, é identificado que as vítimas possuem características em comum, que são baixa renda familiar, inacessibilidade à educação formal, analfabetos funcionais, afrodescendentes, mulheres e crianças. Além das características individuais, normalmente os países subdesenvolvidos e com fragilidade em suas políticas públicas de saúde, educação e de trabalho demonstram mais suscetíveis a ocorrer tal crime.
A vulnerabilidade desses grupos e a busca por uma vida mais digna, por muitas vezes, condiciona a exploração sexual e o tráfico. Importante destacar que os aliciadores costumam ser homens e mulheres com poder econômico e alto nível de escolaridade, no qual seduz através de promessas enganosas de um emprego em outro país, prostituição lucrativa e até mesmo de casamento com um estrangeiro.
O Brasil possui legislações específicas quanto a essa prática, como o artigo 149-A e 231 do Código Penal, a Lei 13.344/16, assim como a ratificação do protocolo de Palermo, por meio do Decreto nº 5017/04.
O Protocolo de Palermo é um texto adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, o qual foi adotado em Nova York no dia 15 de novembro de 2000, sendo atualmente o principal documento de combate ao tráfico humano no mundo e responsável pela conceituação atual do termo, (em seu artigo 3º, alínea “a), que diz:
“A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;”
Tal protocolo determina a aplicação de punições de forma livre para cada país e prevê a adoção de procedimentos de assistência e proteção das vítimas, a fim de sua recuperação social, física e psicológica.
De maneira geral, o Brasil vem se posicionando para a erradicação do tráfico humano, mas infelizmente os números globais são assustadores e a complexidade do crime acaba tornando dificultoso sua erradicação. Neste sentido, como cidadãos podemos tomar algumas medidas para o enfrentamento, que são:
- Duvide sempre de propostas de emprego fácil e lucrativo;
- Peça o contrato de trabalho e faça uma leitura atenta, caso não saiba ler, procure ajuda;
- Busque informações sobre a empresa contratante. A atenção é redobrada em caso de propostas que incluam viagens nacionais e internacionais;
- Deixe endereço, telefone e localização da cidade para onde está viajando;
- Evite tirar cópias dos documentos pessoais e deixá-las em mãos de parentes ou amigos;
- Informe-se sobre endereços e contatos de consulados, ONGs e autoridades da região;
- Caso suspeite de tráfico humano, é possível denunciar através do telefone 180 ou 100.
Esse artigo representa apenas uma forma ampla de instruir a temática, mas falar de tráfico humano, escravidão e exploração sexual não representa uma fala isolada e sim de crime organizado transnacional e a tipificação de vários crimes, como a formação de quadrilha, obstrução da justiça, dentre outros.
A formação social e os números apontados, demonstram grupos de maior vulnerabilidade, bem como determina que a formação de políticas públicas adequadas são imprescindíveis para a diminuição de tal.
Joice F. Pio é advogada e membro da Comissão de Direitos Humanos da 35° subseção da OAB/SP em Limeira.
Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar
Deixe uma resposta