União estável homoafetiva, 10 anos: “Sociedade tem que evoluir muito para deixar de lado o preconceito”

Nesta quarta-feira, o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal (STF) completa 10 anos. O julgamento começou em 4 de maio de 2011 e terminou no dia seguinte com a conclusão de duas ações sobre o tema. A decisão é considerada um marco na história do direito de família no Brasil, mas, passada uma década, ainda há resistências.

Até hoje, não houve, por parte do Congresso Nacional, nenhuma modernização no Código Civil para incluir esta realidade no ordenamento legal. Ou seja, casais homoafetivos continuam, dez anos depois, com o direito assegurado por um entendimento judicial, e não por previsão legal aprovada e reconhecida pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

Sobre o impacto da decisão que completa 10 anos hoje e as lacunas na legislação sobre o tema, o DJ conversou com Elisângela Barbosa Reenkober, advogada em Limeira e professora no Isca Faculdades, onde também é orientadora no Núcleo de Prática Jurídica. Formada no próprio Isca, ela tem pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pela Faculdade Estácio e Pós-Graduação em Direito do Consumidor pela Faculdade Legale, além de ser pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela UniDonBosco/Meu Curso. Confira a entrevista:

Dez anos se passaram desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva. Em uma perspectiva histórica, qual foi a dimensão dessa decisão no mundo jurídico e na sociedade?
Elisângela: No mundo jurídico, foi de suma importância o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277-DF, pois o reconhecimento da união estável homoafetiva como família representou uma verdadeira quebra de paradigma. A partir do julgamento, os pares homoafetivos puderam ter vários direitos que, até então, só eram reconhecidos em uniões heteroafetivas, como, por exemplo, direito à herança do patrimônio do cônjuge em caso de morte, adoção em conjunto, inclusão no plano de saúde, pensão previdenciária por morte, entre outros.

O reconhecimento da união estável homoafetiva, além da dignidade para os homossexuais, teve como objetivo a redução do preconceito e da discriminação por parte da sociedade. Antes, os cônjuges homoafetivos enfrentavam muitas dificuldades para ter seus direitos garantidos.

Como exemplo, em 2002, Maria Eugênia, companheira da cantora Cássia Eller (falecida em 2001), disputou na Justiça a guarda do filho da cantora, que ela criava desde o nascimento. O avô materno, que não tinha contato com a criança, após a morte da cantora resolveu pedir a guarda e consequentemente administrar os bens.

Nesse caso, a guarda foi obtida por acordo, já que Maria Eugenia não tinha nenhum documento que lhe assegurasse ficar com o filho que, afetivamente, era dela. Atualmente além de termos maior aceitação pela sociedade, os cônjuges homoafetivos têm amparo do Judiciário, o que por si só, já é uma grande evolução.

O voto condutor da decisão do STF, feito pelo então ministro Carlos Ayres Britto, ressalta que qualquer discriminação, inclusive em razão da orientação sexual, é violadora de direitos fundamentais. Em relação à união homoafetiva, você sente que houve redução dessa discriminação ao longo da última década ou o Judiciário continua tendo papel decisivo para intervir nesta questão?

Com certeza, ao logo da última década houve redução da discriminação, no entanto, o preconceito e a discriminação ainda têm papel significativo na sociedade atual. Muitas vezes, a discriminação começa no dentro da própria família, onde pais e parentes sentem vergonha em falar que seu familiar possui um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo.

A sociedade ainda tem que evoluir muito para deixar de lado o preconceito, pois muitas pessoas acham normal um casal heterossexual com filhos, no entanto tratam com preconceito quando se trata de um casal homoafetivo.

Como não temos leis que garantem expressamente os direitos dos homossexuais e transexuais, o Judiciário tem papel decisivo para decidir nas questões referente a esses direitos, principalmente quando se trata da aplicação da lei por analogia.

Logo após a decisão do STF, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma resolução para disciplinar o procedimento de reconhecimento nos cartórios. O Judiciário avançou na jurisprudência, mas o Legislativo ainda não. Por qual razão?
A resolução 175/13 do CNJ foi necessária, pois até então os cartórios não se sentiam obrigados a realizarem os casamentos homoafetivos ou converter a união estável homoafetiva em casamento. Mesmo com a decisão do STF, o notário ou registrador levava em conta sua opinião pessoal e se recusava a realizar o casamento ou conversão da união homoafetiva em casamento.

Mesmo após a ADI 4277, os pares homoafetivos tinham que entrar na Justiça para terem a união estável reconhecida. Embora o Judiciário reconheça a união estável homoafetiva, ainda não temos legislação vigente que garanta os direitos dos casais homoafetivos.

A ex-senadora Marta Suplicy, o ex-deputado Clodovil Hernandes e outros deputados e senadores chegaram a apresentar projeto de lei para alterar o Código Civil e incluir os homossexuais, no entanto para virar lei, o projeto tem que passar por duas Casas do Legislativo e por sanção presidencial. Isso faz com que o trâmite para a promulgação seja muito demorado.

Cabe destacar que nem todos deputado e senadores são favoráveis a aprovação de projetos de leis que garantam direitos aos casais homoafetivos e isso se torna obstáculo durante o processo de aprovação.

Existem correntes que sustentam que a união homoafetiva não constitui entidade familiar, mas uma sociedade de fato. Esse entendimento se sustenta diante do que o Judiciário interpreta em relação ao conceito de família?
A doutrina tem dois posicionamentos. O primeiro entende que deve haver a interpretação literal do artigo 226, §3° da Constituição Federal e do art. 1.725, do Código Civil, os quais exigem que a união estável seja entre pessoas de sexos distintos. Essa corrente, de acordo com direito das obrigações, entende que o parceiro é um sócio e só terá direito aos bens obtidos por esforço comum, na constância do casamento.

A segunda corrente tem um posicionamento mais amplo e entende que união homoafetiva é entidade familiar e deve ser comparada a união estável. Embora, até o momento, não tenha havido alteração legislativa que reconheça expressamente a união entre pessoas do mesmo sexo, o posicionamento adotado por nossos tribunais é de que a união homoafetiva constitui entidade familiar e que as famílias constituídas por pares homoafetivos têm os mesmos núcleos axiológicos que as famílias heteroafetivas.

Assim, garantem aos casais homoafetivos os mesmos direitos e garantias que a lei assegura aos casais heteroafetivos, tais como o casamento civil, a facilitação da conversão da união estável em casamento, direito de registrar os filhos advindos ou adotados pelos pares homoafetivos, entre outros.

Do ponto de vista legislativo, quais pontos precisam de revisão pelo Congresso para que a legislação seja modernizada conforme os entendimentos já pacificados pelo Judiciário em relação à união estável homoafetiva?
Do ponto de vista legislativo, o projeto tem que passar pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), que avalia se o projeto tem sentido, se está de acordo com a Constituição Federal e se impacta ou não o orçamento público. Depois, o projeto ainda precisa passar pela votação do plenário.

No entanto não é tão simples como parece. Em 2011, a senadora Marta Suplicy apresentou o Projeto de Lei n° 612/11 no Senado, com a finalidade de alterar o Código Civil e garantir os direitos aos casais homoafetivos. A princípio, o projeto recebeu vário pareceres favoráveis, no entanto foi arquivado em dezembro de 2018.

Já o Projeto de Lei 580/2007, de autoria do ex-deputado Clodovil Hernandes, ainda está em tramite, no entanto está “aguardando Designação de Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC)”. Apensado ao PL 580/2007, está o PL 5120/2013, de autoria do deputado Jean Wyllys, que também via a modificação do Código Civil para inclusão.

Além de passar pela CCJC, para que o projeto de Lei seja aprovado, ele precisa passar pelas duas Casas avaliadoras do Congresso: Câmara e Senado. Ambas as casas devem estar de acordo. No entanto, os projetos de lei que visam modificar o Código Civil para garantir direitos dos casais homoafetivos encontram muita dificuldade para tramitação, pois muitos deputados e senadores adotam posturas conservadoras e se posicionam contra textos que coloquem os casais homoafetivos em igualdade com os casais heteroafetivos.

Foto: Divulgação

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