Se o Poder é do povo, por que a decisão é exclusiva do Presidente do Congresso?

Por Amilton Augusto e Antônio Carlos Fernandes Jr

Como é cediço, é exclusiva dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, bem como do Congresso Nacional, de acordo com o Regimente Interno de cada uma dessas Casas, a competência para inclusão na Ordem do Dia dos Projetos de Lei que serão votados, não havendo previsão diversa que permita aos Deputados, de modo individual ou em conjunto, tal prerrogativa, o que, cabe destacar, inclui a apreciação de pedidos de Impeachment.

Ocorre que, o artigo 61 e parágrafo 2º da Constituição da República, cumprindo a máxima constante do artigo 1º da mesma Carta Magna de que o Poder emana do povo, no que tange especificamente à iniciativa de propositura de projetos de leis, concede tal prerrogativa aos cidadãos, de acordo com o cumprimento de alguns requisitos, no seguinte sentido:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
[…]
§ 2º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

Ainda que a Constituição da República tenha trazido expressamente tal previsão, não especificou a forma de efetivar tal preceito, deixando ao critério da Casa legislativa a tramitação dos projetos de leis apresentados, seja os de iniciativa popular, assim como todos os demais, incluindo aqueles apresentados pelas bancadas partidárias e conjunto, o que, como dito, acaba deixando tal competência exclusivamente nas mãos dos Presidentes de cada Casa de Leis, o que, por simetria, aplica-se às Casas legislativas estaduais, distrital e municipais.

Nesse sentido, na tentativa de dar efetividade a previsão constitucional do artigo 61 e seguintes, foi apresentado pelo Senador Paulo Paim, a Sugestão (SUG) nº 22/2020, de iniciativa da Associação Nacional dos Aposentados, Deficientes, Idosos, Pensionistas e dos Segurados da Previdência Social (ANADIPS), propondo a transformação em Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que ficou conhecida como PEC da Pauta Popular, para alterar e incluir os parágrafos 3º ao 6º ao citado artigo 61 da Constituição, com objetivo de garantir o direito popular de incluir projetos de leis em pauta para votação, nos seguintes e exatos termos:
Art. 61. […]
[…]
§ 3º Qualquer projeto de lei, inclusive os de iniciativa popular, será incluído na pauta de votação da Casa em que estiver tramitando, quando for apresentado requerimento nesse sentido:
I – por, no mínimo, três décimos por cento do eleitorado nacional, distribuído por todas as regiões do País, com não menos de dois décimos por centro de cada uma delas;
II – pela maioria dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal ou por líderes partidários que representem essa maioria.
§ 4º Se o projeto de lei objeto do requerimento, conforme o § 3º, não for apreciado em até quarenta e cinco dias, contados da data do respectivo protocolo, serão sobrestadas todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação.
§ 5º A votação de projeto de lei pautado por requerimento de que trata o § 3º será ostensiva e nominal.
§ 6º O requerimento de que trata o §3º, I, observará o seguinte:
I – a subscrição do requerimento pelos eleitores, sua contabilização, processamento e certificação serão efetuados pelo Tribunal Superior Eleitoral, mediante, preferencialmente, sistema eletrônico;
II – a iniciativa do requerimento poderá ser diretamente de eleitores, de partido político ou entidade civil;
III – o requerimento será protocolado perante a Secretaria-Geral da Mesa da Casa em que o projeto de lei estiver tramitando;
IV – cada eleitor poderá subscrever um requerimento por sessão legislativa”.

Iniciativa louvável, que tem como apoiadores, entre outros, o Movimento BASTA! e a CONACATE – Confederação Nacional das Carreiras e Atividades Típicas de Estado, cujo seu Presidente é também subscritor do presente texto.

Assim, tendo em vista que a soberania popular, fundamento do Estado Democrático de Direito, é exercida pelo povo, conforme previsão do artigo 1º e 14 da Constituição Federal, seja diretamente, através da iniciativa popular, seja indiretamente através da representação político-eleitoral, pelos representantes eleitos, razão pela qual, ter o cidadão esse direito constitucional à propositura de projeto de lei, sendo este o titular do exercício do poder estatal, sem que se garanta a efetividade, no mínimo, na apreciação do mesmo, pela Casa legislativa, é totalmente incongruente, ferindo, por certo, os princípios da máxima efetividade e da força normativa da Constituição.

Tais princípios são norteadores da interpretação constitucional, sendo o princípio da máxima efetividade, também denominado de princípio da eficiência ou da interpretação efetiva, entendido no sentido de que a norma constitucional deva ter a mais ampla efetividade social, que, embora utilizado para garantir maior eficácia aos direitos fundamentais, pode ser facilmente utilizado no presente cenário, tendo em vista que muitas normas que são levadas ao Congresso Nacional visam garantir tais direitos. Por sua vez, o princípio da força normativa da Constituição tem como fundamento garantir a máxima efetividade às normas constitucionais em conflito, ou seja, na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição, contribuem para uma eficácia ótima da lei fundamental.¹

Nesse sentido, como se vê da doutrina de Pedro Lenza: “embora a iniciativa popular caracterize-se como uma forma direta de exercício do poder, sem o intermédio de representantes, através de apresentação de projeto de lei, dando-se início ao processo legislativo de formação da lei […], aludido instituto serve apenas para dar o “start”, ou seja, apenas para deflagrar o processo legislativo, sendo que o Parlamento poderá rejeitar o projeto de lei ou, ainda, o que é pior, emendá-lo, desnaturando a essência do instituto.”²

Com todas as vênias ao nobre autor, mas entendo que não há sequer o referido “start”, tendo em vista que referido projeto de lei fica a mercê da vontade discricionária dos Presidentes das Casas legislativas, que poderá sequer levá-lo à apreciação do Plenário ou de qualquer Comissão, o que certamente frustra e torna inútil grande esforço popular, assim como ocorre com todo e qualquer projeto de lei, bem como, destaca-se, com os pedidos de impeachment previstos na Constituição da República.

Desse modo, uma vez a ideia de Constituição é no sentido de haver no Estado uma limitação ao poder autoritário e regras que garantam a prevalência dos direitos fundamentais, consagrando, com base na soberania popular, os preceitos do Estado Democrático de Direito, louva-se a iniciativa de inclusão no artigo 61 da Carta Magna, de previsão que garanta ao povo, bem como aos seus representantes eleitos, com base em critérios objetivos, nos termos apresentados na SUG 22/2020, competência concorrente para, dando máxima efetividade ao que prevê os artigos 1º e 14 do mesmo texto, a prevalência da soberania popular na inclusão de projetos de leis para votação das Casas legislativas de todos os entes da Federação, previsão que, não só dará efetividade aos projetos de iniciativa popular, bem como garantirá uma maior representatividade na atuação de todos os parlamentares, sejam eles senadores, deputados ou vereadores.

¹ LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 147-149.
2 Idem. p. 499.

Amilton Augusto é advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo. Vice-Presidente da Comissão de Relacionamento com o Poder Legislativo da OAB/SP. Membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ. Membro fundador da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (2015). Membro do Conselho Consultivo das Escolas SESI e SENAI (CIESP/FIESP). Coautor da obra coletiva Direito Eleitoral: Temas relevantes – org. Luiz Fux e outros (Juruá,2018). Autor da obra Guia Simplificado Eleições 2020 (CD.G, 2020). Coautor da obra Dicionário Simplificado de Direito Municipal e Eleitoral (Impetus, 2020). Palestrante e consultor. E-mail: contato@amiltonaugusto.adv.br.

Antônio Carlos Fernandes Jr atua no setor público há mais de 30 anos, como servidor de carreira no Poder Legislativo e, no Executivo, tendo ocupado três Subprefeituras de São Paulo – Vila Mariana, Butatã e Zona Sul. Com larga experiência também na iniciativa privada é Presidente da FENALEGIS e da CONACATE. Dedica-se a uma ação articulada, não apenas nas diversas carreiras de Estado e seu fortalecimento, como também das entidades sindicais da iniciativa privada e outras organizações sociais, na preservação e aprimoramento das redes de proteção social.

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