Quando as mulheres vão à luta

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

Em 2001, as rádios, TVs e plataformas digitais de música tocavam um funk que, parecia, iria normalizar uma prática de décadas ou séculos no país do machismo. Com um ritmo dançante e “alegre”, a letra de “Um tapinha não dói”, da banda carioca Bonde do Tigrão, fez um enorme sucesso, chamando a atenção de artistas como Caetano Veloso, que equivocadamente chegou a gravar a canção.

Dois anos depois, pressionados pelas organizações de Mulheres contra a Violência e outras de direitos humanos, o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra a produtora da canção, a Furacão 2000. Embora condenados a pagar uma multa em 2013, três anos depois um juiz do Tribunal Regional Federal do Rio de Janeiro absolveu os autores e a produtora, encerrando o processo com a seguinte frase: “letras de funk, como a desta música, podem até ser de mau gosto, mas não incitam a violência”.

Como não incitam a violência?

Um tapinha dói e muito. Só o gesto com intenção de bater e machucar já destroem com a vítima. Desde quando violência não provoca dor?

Na minissérie “Maid”, da Netflix, o pai da personagem principal Alex, ao ser inquirido sobre a violência que sofria com os abusos psicológicos, afirma que não via agressão do marido da filha, e sim um normal desentendimento entre um casal de jovens. E mais: o mesmo genitor se recusa a depor a favor da filha no processo de guarda da neta, com o argumento de que não podia porque o agressor estava passando por um momento difícil e era alcoólatra.

A tentativa da sociedade em normalizar, em tentar vender o peixe de que, em briga de marido e mulher, ninguém coloca colher, ou que uma briguinha é perfeitamente necessária na relação de um casal, é escandalosa nestes dias e tempos em que a luta por direitos se faz cada vez mais necessária.

Em “Maid”, o caso de Alex e da maioria das mulheres ali relatados são provocados dentro da estrutura da chamada família nuclear, formada por papai, mamãe e filhinhos. Na concepção machista, esta é a família ideal, onde o homem macho-alfa desenvolve o papel de sustentar financeiramente a casa e, por isto, ele é o chefe supremo.

À mulher cabe o posto da reprodução e satisfação sexual do macho e cuidar da casa. Nos tempos atuais, ela até pode trabalhar, desde que não ganhe mais que ele e cuide de seus afazeres “domésticos”, estes sim definidos pela lei divina.

Sim, muitos que pensam assim carregam um crucifixo no peito.

Na minissérie aqui citada, mais uma cena em que o pai de Alex é envolvido: em um jantar, o agressor dá o seu show humilhando a mulher e, após a violência, o pai prossegue o jantar pedindo que todos rezem pela comida, obrigando Alex a pegar nas mãos de seu marido abusador.

“Maid” nos remete a pensar em algumas questões importantes. A violência doméstica não se limita a questão física. Ela transcende à tapinha, tapões e socos. Ela deriva também de gritos, constrangimentos, situações de abandono e de exclusão. Um gritar mais alto sempre é prerrogativa do homem, por sua voz grossa e seu porte físico – as vantagens sobre a mulher são imensas.

A outra forma de abuso está no controle das condições de vida e sobrevivência. Limitar a cônjuge ao lugar em que mora, tirando dela o convívio com as pessoas, a obrigando cuidar de seus “afazeres”, é uma das formas. Como dificultar o acesso a dinheiro e recursos que possam ajuda-la a se movimentar e até se alimentar.

Há casos de mulheres e seus filhos que são impedidos de comer, porque o agressor não abastece a casa e o faz de propósito. Muitos devem se perguntar: mas isto acontece em pleno século XXI, onde as mulheres se organizam, lutam e vem conquistando direitos?

Sim, ocorre, principalmente quando se tem governos que não priorizam e não estão nem aí com políticas públicas para as mulheres. O contrário defende, de unhas e dentes, a concepção machista e misógina.

Só para se ter uma ideia, o governo Bolsonaro gastou no ano passado apenas R$ 2 milhões com políticas voltadas a violência às mulheres, apesar de propagandear que disponibilizou R$ 106 milhões. Na pandemia, a violência, seja ela psicológica ou física, ou as duas, aumentou significativamente.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança pública, uma de quatro mulheres, afirmam ter sofrido violência. E o que mais assusta. Cresce o numero de agressores serem da família nuclear e adjacentes, como marido, filho, pai, tio, avô e por aí vai.

“Maid” é uma minissérie obrigatória para que não só mulheres assistam, e sim toda a família, seja ela nuclear ou não. Vários aspectos são trabalhados na película, ente eles o lema de que mulheres são solidárias sem interesses pessoais, têm senso de organização coletiva, são corajosas e amorosas e, claro, vão à luta.

Uma minissérie para assistir várias vezes. SHOW!

Assista o trailer de “Maid” aqui.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.