por Vinícius De Sordi Vilela

O Brasil possui inúmeras leis e atos normativos que o regem e regulam as relações sociais, sendo que no grau mais elevado de importância e de hierarquia da força normativa se encontra a Constituição Federal, promulgada em 1988, que tem por fundamento de maior relevância, o princípio da dignidade da pessoa humana.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, é o conjunto normativo de maior expressão do Brasil, considerada por muitos como uma das constituições mais avançadas do mundo no âmbito das garantias individuais, trazendo em seu seio, igualmente, os direitos sociais como garantia fundamental ao cidadão, tais como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Tal inclusão se encontra perfilhado, de modo mais evidente, a um de seus fundamentos, que é justamente a dignidade da pessoa humana, a fim de atingir os objetivos fundamentais que o povo brasileiro, por meio de seu constituinte, traçou para o Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim, como já sustentado, brilhantemente, pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. Luiz Edson Fachin, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.543, na data de 11/05/2020, “o princípio da dignidade da pessoa humana busca proteger de forma integral o sujeito na qualidade de pessoa vivente em sua existência concreta”, como membro efetivo e partícipe de sua própria comunidade.

Ou seja, não se pode e nem se deve permitir que meios de exclusão social se façam presentes na sociedade brasileira, a que título for, uma vez que tal prática colide, frontalmente, com os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, conforme preconiza, de modo expresso, a Constituição Federal de 1988.

Nesse escopo, os três Poderes da União – Legislativo, Executivo e Judiciário, dentro de suas respectivas competências e funções, vem balizando as suas atividades a fim de cumprir os ditames constitucionais, notadamente, a inclusão social, fundados, notadamente, na efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Dentro destas práticas inclusivas, é possível constatar a elaboração de diversas leis, como o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei da Assistência Judiciária Gratuita, dentre outras, assim como a instituição de programas sociais, como o Bolsa Família, Auxílio Emergencial e outros, tudo com a finalidade de promover uma vida digna às pessoas, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, tudo em consonância à ordem constitucional.

Aqui, merece destaque o pensamento de Karina Costa Braga, a qual sustenta que “o dever dos governantes é instituir um pacto social que seja capaz de estimular o sentimento de solidariedade social coletiva com o objetivo de alcançar um justo equilíbrio para que todos possam ter uma vida digna, com a garantia do mínimo existencial”.

Ou seja, a construção de uma sociedade livre justa e solidária passa pelo crivo, não só dos governantes, mas de todos os membros que a compõe, uma vez que a solidariedade é uma virtude intrínseca à condição humana.

Nesse esteio, na data de 02 de julho do presente ano, entrou em vigor a Lei Federal nº 14.181, batizada de Lei do Superendividamento, a qual alterou o Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90) e o Estatuto do Idoso (Lei Federal nº 10.741/2003), trazendo dispositivos normativos acerca da prevenção do superendividamento da pessoa natural, sobre crédito responsável e quanto a educação financeira do consumidor.

Tal assunto se revela importante quando se depara com dados estatísticos acerca da condição financeira do brasileiro, notadamente, das famílias paulistanas, extraídos da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e divulgados pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FECOMERCIO-SP).

Segundo referida pesquisa, a qual tem por objetivo diagnosticar o nível de endividamento e inadimplência do consumidor, “o número de famílias endividadas na cidade de São Paulo bateu recorde histórico em junho, atingindo 64,6% dos lares na cidade, constituindo o sétimo mês seguido de avanço na taxa”.

Ou seja, é um número assustador, principalmente, pelo fato de se vivenciar um estado de calamidade pública, em decorrência do Covid-19, no qual, em razão das restrições sanitárias impostas, muitos postos de trabalho foram suprimidos em razão das dificuldades impostas, e, consequentemente, uma queda drástica na qualidade de vida dos brasileiros como um todo, mediante a diminuição da renda e o aumento dos preços.

Em que pese a descrição simplória e resumida do caos social a que todos foram submetidos pela pandemia, é de fácil percepção que tal ocorrência ocasiona a dificuldade no pagamento de obrigações, sejam elas supérfluas, sejam as necessárias, gerando, assim, um aumento no endividamento em consequentemente, na inadimplência do consumidor, muitas vezes afetando a sua própria dignidade e o acesso a direitos sociais fundamentais, como a moradia, alimentação, dentre outros acima citados.

Assim, reconhecendo a vulnerabilidade do consumidor, notadamente, a hiper vulnerabilidade de certos grupos sociais, como a dos idosos, seguindo o texto constitucional e do Estatuto do Idoso, em que se impõe a proteção e o amparo a tais pessoas, a Lei do Superendividamento apresenta mecanismos para conter os abusos na oferta de crédito, bem como aumenta a proteção de quem está endividado e não consegue pagar quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.

Ressalta-se que, nos termos legais, superendividamento corresponde à “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”, não se incluindo, assim, aqueles devedores que tenham contraído dívidas de má-fé ou mediante fraude, com a intenção de não pagar, em especial, por produtos e serviços de alto luxo.

Em que pese se tratar de uma lei de recente vigência, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, quando da análise de um recurso provindo de uma ação indenizatória proposta por um consumidor em face de uma instituição bancária, a aplicou, a fim de ressaltar, dentre outros propósitos, o dever de informação mínima necessária quanto à oferta do crédito e o esclarecimento do consumidor no momento da contratação, ressaltando o Douto Desembargador Marcus Costa Ferreira em seu voto: “Não se olvide que as maiores “vítimas” desta modalidade contratual são aposentados, pessoas idosas, muitas vezes analfabetos, ou seja, HIPERVULNERÁVEIS, que já recebem uma parca renda e, em busca de crédito, acreditam na promessa “milagrosa” da concessão de um crédito a longo prazo, com parcelas reduzidas, mas desconhecem as reais condições de contratação”.

Assim, com o objetivo de garantir o mínimo existencial por meio de uma vida digna, os três Poderes – Legislativo, o Executivo e o Judiciário, vem se empenhando a fim de cumprir com os objetivos fundamentais propostos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, competindo a todos o exercício da virtude da solidariedade social coletiva, a fim de proporcionar, indistintamente, o mínimo existencial a qualquer pessoa.

Vinícius De Sordi Vilela é advogado, mestre em Direito e professor universitário.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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