A manhã de sábado sem sol acordou com o som de destruição. Quem caminhava pelo Centro de Limeira naquele 2 de março de 2019 se deparou com uma escavadeira retirando de cena um prédio histórico, erguido em 1914 na esquina da Praça Dr. Luciano Esteves, decrépito em razão do abandono e de um incêndio mal explicado ocorrido anos antes.
A derrubada veio por uma série de fatores: da intervenção tardia do poder público na preservação da história ao interesse privado em não mantê-lo, o casarão se foi e a história de sua queda terminou neste mês. No último dia 14, a Justiça de Limeira, a pedido do Ministério Público (MP) arquivou as investigações que apontaram inexistência de crimes no ato.
Como tudo chegou a isso? O DJ conta a seguir.
O pedido de demolição
No dia 8 de junho de 2016, uma petição de 8 páginas, assinada pelo médico André Kyriazi Campos, morador de Sorocaba, aportou no Judiciário limeirense. Dono dos imóveis situados na esquina da praça Dr. Luciano Esteves e que se estendiam pela Rua Barão de Cascalho, ele pediu alvará para poder demolir as construções.
Os imóveis foram adquiridos por ele em agosto de 2012. Seu objetivo era locá-los, mas, como relatou na peça, se deparou com baixos valores comerciais. Para melhorar, era preciso reformar o prédio. O valor estimado ultrapassava R$ 1 milhão, mas ele não tinha dinheiro para isso. Assim, o prédio ficou sem utilização.
Em fins de maio daquele ano, o casarão da Luciano Esteves, como ficou conhecido o imóvel, sofreu um duro baque. Ao longo dos anos anteriores, a construção vinha sofrendo o impacto do tempo e seu estado se deteriorava aos olhos de todo mundo, além de ser ocupado por moradores de rua. Em razão disso, a Prefeitura de Limeira notificou o proprietário a respeito do imóvel. O pior estaria por vir: um incêndio traria mais prejuízos à estrutura do prédio, destruiu parte do telhado, assoalho e afetou as estruturas de sustentação.
No dia 23 de maio de 2016, o dono do casarão solicitou, junto à Prefeitura, autorização para demolir, em definitivo, o prédio. Na petição, ele relatou em juízo que a Secretaria de Obras e Urbanismo não se manifestava a respeito, pois tinha interesse na restauração. Isso o prejudicava, pois ele era responsável pelo prédio, que oferecia risco aos pedestres. E deixou escapar uma frase, meio que perdida no texto, um indicativo da razão dele ter pedido o alvará: “um imóvel que não possui qualquer interesse histórico para a cidade”.
Não era o que a Prefeitura pensava.
Tombamento
Naquele momento, o prédio estava em processo de tombamento junto ao Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico e Arquitetônico de Limeira (Condephali). Essa foi uma das razões apresentadas pela Prefeitura para negar o aval para derrubada do prédio. Uma resolução do Conselho indicava que, mesmo após o incêndio, o casarão ainda era passível de recuperação, uma vez que suas características arquitetônicas estavam preservadas.
Como o responsável pelo imóvel não havia atendido as notificações para limpeza, a Prefeitura, na época administrada por Paulo Hadich, decidiu fazê-la compulsoriamente, repassando as despesas posteriormente ao proprietário.
Ao apresentar a petição pedindo o alvará, o dono apresentou um laudo que atestava a necessidade da demolição do prédio. Isso esbarrava na alegação do Executivo limeirense, que acreditava na recuperação. Para esclarecer este ponto, o juiz Flávio Dassi Viana determinou, em dezembro de 2016, uma perícia para saber quem tinha razão.
O início do fim
O laudo foi entregue à Justiça um ano depois. O perito Marcio Monaco Fontes apresentou um documento de 84 páginas concluindo que o pavimento térreo do casarão apresentava risco de desabamento e não era passível de recuperação, já que as alvenarias, além de antigas, tinham rachaduras e trincas, especialmente nas portas e janelas, e não suportariam a carga de um telhado novo. Ele constatou instabilidade estrutural do prédio.
A perícia reforçou as convicções do proprietário. Em petição apresentada em janeiro de 2018, apontou que, mesmo a Prefeitura iniciando estudos para tombamento em 2007, quase 9 anos antes do incêndio, o que estava em discussão era o estado de conservação do casarão.
O Condephali interveio no processo e pediu a avaliação do prédio por um perito especializado em recuperação de imóveis tombados. A ideia foi endossada pela Prefeitura, mas o pedido não foi aceito pela Justiça.
Em 23 de abril de 2018, o juiz Rudi Hiroshi Shinen julgou procedente o pedido feito pelo dono do casarão. Apontou que o Município não indicou qual o interesse histórico na preservação do prédio e que somente agilizou o procedimento de tombamento após o incêndio. O laudo pericial foi determinante para a decisão, que autorizou a demolição. Começava, ali, o fim do prédio. A discussão, no entanto, estava longe de acabar.
No mês seguinte, o promotor André Luiz Brandão pediu a anulação da sentença, por um motivo simples: o Ministério Público não havia sido intimado para intervir no processo, como fiscal da ordem jurídica. A demolição de imóvel de interesse histórico pode repercutir no meio ambiente cultural, o que requeria a participação da Promotoria. O magistrado concordou e anulou a decisão, retomando para a fase de instrução. Havia uma esperança.
O que o casarão tinha de história?
Assinado pela arquiteta Alessandra Argenton Sciota, um laudo técnico constava nos anexos protocolados pelo Ministério Público e revelava, finalmente, as razões do interesse da Prefeitura em manter o casarão em pé. A dificuldade: pouquíssimas informações, fotos e dados foram encontrados.
A ficha no cadastro imobiliário da Prefeitura indica 1914 como o ano da construção. O prédio foi feito com tijolos de barro e cobertura em telhas cerâmicas sobre uma estrutura de madeira. A casa era um exemplar do período republicano, com alpendre de ferro e setorização de ambientes. Um “morar à francesa”, que é a separação entre social, íntimo e serviço.
Desde 1984, conforme os arquivos do Município, o casarão abrigou loja de roupas e, depois um estabelecimento que alugava roupas para noivos. Foi a última utilização do prédio. Depois disso, mais nada.
O conjunto do prédio tinha características iguais a uma obra atribuída a Ramos de Azevedo em Campinas, a Fazenda São Vicente, de uma época conhecida na arquitetura como Ecletismo: volumes projetados tanto na frente como nas laterais, mudando o padrão arquitetônico colonial. Era uma saída do simples para um “conjunto mais refinado”.
E onde entra Ramos de Azevedo na história do casarão limeirense? Foi ele quem fez o projeto da casa-sede da Fazenda São Vicente, em Campinas, entregue à Genebra de Barros Leite, a Baronesa de Limeira. Ela foi casada com Vicente de Souza Queirós e tiveram, como um dos filhos, Luis Vicente de Souza Queirós, que viria a ser o patrono da escola ESALQ.
Um descendente desta família foi prefeito de Limeira. Mário de Souza Queirós dirigiu a cidade entre os anos de 1914 e 1916. Estas coincidências sugeriram indícios de que o casarão da Luciano Esteves era uma réplica da casa da Fazenda São Vicente. Os traços arquitetônicos eram semelhantes e até elementos decorativos em argamassa aplicada em fachadas foram encontrados nos dois imóveis.
Foi este o argumento utilizado pela Prefeitura para preservar o prédio. Em vão.
A autorização judicial
O promotor Brandão apresentou muitos questionamentos a respeito do interesse histórico do imóvel e pediu até a entrada do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na discussão. O órgão, contudo, respondeu em ofício que quem detinha competência para opinar sobre o imóvel era o próprio Condephali e não entrou na discussão. O MP pediu, então, que o órgão limeirense se pronunciasse sobre vários pontos. O Conselho defendeu a restauração do casarão.
Em sua manifestação final, agora sob cuidados da promotora Letícia Macedo Medeiros Beltrame entendeu que, ante a ruína iminente do prédio e a ausência de elementos sobre a reconstrução do prédio, o alvará deveria ser concedido ao proprietário para demolição do prédio.
A sentença, agora válida, foi assinada novamente pelo juiz Rudi Hiroshi Shinen em 25 de fevereiro de 2019. “A segurança à incolumidade física dos transeuntes e demais habitantes da urbe deve prevalecer sobre eventual [não demonstrado] interesse histórico-cultural advindo do bem, de modo que o pleito do autor merece integral acolhimento”, escreveu. Foi a senha para derrubada do prédio.
Em 2 de março de 2019, uma escavadeira pôs o prédio ao chão deixando a Prefeitura inconformada, pois ainda corriam os prazos para apresentação de recurso que, uma vez procedente, anularia a sentença de primeira instância. Antes que houvesse a possibilidade da decisão ser reanalisada, o casarão chegava, fisicamente, ao fim. Não jurídico, porém. Foi desta forma que, a Prefeitura, além de recorrer ao Tribunal de Justiça (TJ-SP) para ao menos obter uma vitória simbólica que demonstrasse o equívoco da derrubada, pediu a instauração de um inquérito policial.
Foi essa investigação que durou quase 3 anos e chegou ao fim neste mês de maio, encerrando qualquer debate sobre o episódio. Quanto a apelação contra a decisão que autorizou a derrubada, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julgou o recurso em 8 de outubro de 2019 e manteve a decisão, consolidando a vitória do proprietário do imóvel.
A investigação policial
O inquérito apurou se a derrubada do casarão configuraria quatro delitos: artigos 165 (destruição de coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico), 346 (tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção) e 347 (fraude processual), todos do Código Penal, bem como o artigo 62 da Lei 9.605/98 (Destruir bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial).
Ouvido em 2020, o proprietário reiterou toda a história que havia contado quando pediu à Justiça aval para demolir o casarão: a demora da Prefeitura em conceder a permissão, a deterioração do imóvel que ficou em estado crítico após o incêndio em 2016. Relatou que, assim que obteve autorização judicial, providenciou, na mesma semana, a demolição do prédio para proteger as pessoas que passavam pelas imediações.
Após as diligências policiais, o promotor Luiz Alberto Segalla Bevilacqua pediu o arquivamento da apuração. Destacou que o responsável pelo casarão desconhecia a existência de processo administrativo para tombamento do imóvel e havia obtido autorização judicial para a demolição.
O Ministério Público (MP) entende que não houve dolo (intenção) na conduta do proprietário do casarão e os crimes apurados exigem este elemento subjetivo – a vontade de praticar tais condutas. “A não identificação do dolo na conduta torna prejudicada a persecução penal do Estado no que concerne a configuração dos delitos insculpidos nos artigos 165, 346 e 347, ambos do CP e artigo 62 da Lei 9.605/98”, escreveu, promovendo o arquivamento do caso.
Em 14 de maio último, o juiz Wander Benassi Junior homologou o arquivamento do inquérito policial, que pode ser reaberto se surgirem novas provas.
Passados dois anos da demolição, nenhuma construção foi edificada na esquina da Praça Dr. Luciano Esteves com a Rua Senador Vergueiro.
No lugar do casarão erguido em 1914 e integrante do Centro Histórico, há um espaço a céu aberto.
Hoje é utilizado como estacionamento para carros.
Fotos: Reprodução do processo judicial. A imagem da derrubada foi publicada originalmente pela Gazeta de Limeira e levada aos autos pela Prefeitura de Limeira
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