O caso do estupro culposo

Por Edmar Silva

Até quem não está familiarizado com temas ligados à ciência do Direito não só ouviu falar como também entrou na discussão e debateu a questão envolvendo o caso que ficou conhecido como estupro culposo. Isso se deu em razão de um processo penal sobre estupro de vulnerável que, embora esteja tramitando em segredo de justiça, veio a público por meio de matéria feita pelo portal The Intercept, que divulgou trecho da audiência do referido processo, mais precisamente a parte da oitiva da vítima do estupro.

Em seguida, nas redes sociais passaram a circular cópia da manifestação processual do Ministério Público, cujo representante, ao final da instrução processual, pediu a absolvição do réu, e cópia da sentença, que acolheu o referido pedido e de fato absolveu o acusado. De todo o material que veio a público, é possível dividir a situação em dois fatos: (i) a decisão que absolveu o réu e (ii) a humilhação sofrida pela vítima durante a audiência.

Com base nesses fatos, a opinião pública passou a massacrar o réu do processo de estupro, desejando sua condenação a todo custo, e a criticar ferozmente os operadores do direito que atuaram no caso, sobretudo o advogado do réu. Porém, é preciso verificar que os referidos fatos são distintos e não podem ser confundidos. Um não interfere no outro e tampouco o anula.

Antes de melhor explicação sobre a distinção desses fatos, importante destacar que realmente não existe o crime de estupro culposo no ordenamento jurídico, por falta de previsão na lei. E não poderia ser diferente, eis que, na prática, fica difícil pensar em como uma conduta poderia configurar tal delito. Anota-se, ainda, que o termo estupro culposo não foi utilizado em qualquer manifestação processual feita nos autos, seja pelo Promotor, seja pelo magistrado ou pelo advogado. Surge, então, a dúvida de como esse termo ganhou tanta repercussão e foi tão disseminado nas redes sociais. Em resposta, é possível dizer que isso foi obra do portal Intercept, que confirmou tal situação e se justificou dizendo que assim agiu na tentativa de explicar o caso às pessoas que não são da área do Direito. Dessa forma, fica aqui estabelecida a premissa de que o termo estupro culposo não é técnico e não foi usado pelos profissionais envolvidos no processo para fundamentar a absolvição do réu.

Esclarecida tal situação, passa-se a analisar, ainda que de forma superficial, a decisão que absolveu o acusado do crime de estupro de vulnerável, que está previsto no art. 217-A, §1º, do Código Penal.

A sentença foi técnica, muito bem fundamentada e amparada na lei, nos princípios que norteiam o direito penal e, sobretudo, foi elaborada com base nas provas produzidas em juízo. Com efeito, várias testemunhas afirmaram ter visto ou mantido contato com a vítima logo após ela se encontrar com o réu e nada de anormal perceberam. Não notaram, por exemplo, sujeira ou amassado nas vestes dela e tampouco comportamento estranho ou desesperado. Pelo contrário, as testemunhas disseram que ela aparentava estar bem (“normal”) e, sobre um possível estado de embriaguez da vítima, narraram não ser o caso, pois ela não costumava ingerir álcool em demasia e não apresentava sintomas ou características de pessoa embriagada. 

Nesse contexto, verifica-se que a palavra da vítima foi rebatida pelas demais provas dos autos. Sabe-se que a palavra da vítima é de grande relevância para o esclarecimento desse tipo de crime, que geralmente é praticado às escondidas, na ausência de outras pessoas, o que elimina a chance de haver uma testemunha presencial. No entanto, para se decretar a condenação penal de uma pessoa, não pode a prova ser somente a fala da vítima. É preciso que a versão da ofendida encontre apoio, ainda que minimamente, em outros elementos de provas, o que não ocorreu no caso ora analisado.

E diante dessa falta de provas, outra solução não havia senão a absolvição do réu, com fundamento em um princípio do direito penal identificado pela expressão latina in dubio pro reo, que significa que, havendo dúvida, deve o juiz proferir decisão em favor do acusado, ou seja, deve o magistrado absolver o acusado. E foi o que fez o nobre juiz que sentenciou o caso em análise.

Vale ressaltar que a sentença não foi no sentido de que o ato sexual entre vítima e acusado não existiu ou que a vítima inventou toda a narrativa criminosa ou, ainda, que o estupro foi culposo. O juiz apenas concluiu que as provas produzidas no processo não foram suficientes para condenar o réu porque não trouxeram a certeza necessária sobre o estado de vulnerabilidade da vítima.

É importante frisar que essa falta de provas que foi utilizada como fundamento para absolver o acusado está relacionada ao fato de a vítima estar, ou não, embriagada, dopada, ou seja, vulnerável, no momento do ato sexual, o que a impediria de resistir à conduta e configuraria o crime de estupro, nos termos da parte final do §1º do art. 217-A do Código Penal. Ou seja, o juiz não negou a existência de ato sexual entre as partes, mas concluiu que não existiu prova segura de que a vítima estava sem sua plena consciência ou sem possibilidade de reagir ou resistir ao ato sexual, o que proporcionou a aplicação do princípio do in dubio pro reo e impôs, acertadamente, a absolvição do acusado, com fundamento no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.

Por outro lado, nada justifica a humilhação que a vítima sofreu durante seu depoimento na audiência de instrução.

O vídeo contendo trecho da audiência tornou públicas cenas lamentáveis em que a ofendida, única mulher presente na audiência, foi menosprezada em todos os aspectos, tanto na sua vida pessoal como profissional. As perguntas do advogado feitas à vítima foram elaboradas de forma contundente, desnecessária, e sempre insinuando que ela seria prostituta e estaria almejando apenas fama e dinheiro com aquele processo criminal. Fugindo dos fatos que estavam em julgamento, o advogado continuou a achincalhar a vítima, esnobando-a, mesmo após ela já apresentar evidente constrangimento e iniciar um sincero choro.

Esses fatos ocorridos na audiência são repugnantes e merecem apuração aprofundada e séria. E em caso de ser constatada alguma responsabilidade, devem ser tomadas as medidas judiciais e extrajudiciais adequadas.

Todavia, essa humilhação da vítima em audiência não influencia, não interfere e não mancha as provas produzidas no processo que levaram à absolvição do réu. Como diz o ditado popular, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

Assim como a sentença desse caso é um exemplo de peça jurídica a ser observada por todos os operadores do direito que têm a nobre função de julgar, o trecho da audiência divulgado pelo Intercept em que a vítima é menosprezada é um exemplo de como uma audiência judicial não deve transcorrer.

No entanto, conforme já frisado, um fato não interfere no outro. A sentença foi feita dentro dos ditames da lei e o juiz, com base nas provas constantes nos autos, acertadamente absolveu o acusado.

Não é admissível, assim, que a opinião pública confunda esses fatos e, em razão da humilhação da vítima ocorrida em audiência, nutra sentimento de vingança e o direcione ao acusado do processo penal. É preciso separar os fatos!!  

Edmar Silva – Analista Jurídico do Ministério Público

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