Mulher não quita terreno, mas construiu casa 3 vezes mais cara

Não é incomum, por diversos motivos mas sobretudo financeiro, comprador de imóvel pedir a rescisão de contrato. No entanto, um caso em Limeira (SP) intrigou porque a compradora pediu a rescisão do contrato de compra e venda de um lote, mas depois que ergueu sobre ele um imóvel três vezes mais caro que o terreno.

O caso foi julgado nesta segunda-feira (2/9) pelo juiz Paulo Henrique Stahlberg Natal, da 4ª Vara Cível, que aplicou o instituto da acessão inversa, tese levantada pela construtora em contestação.

A ação da compradora pedia a rescisão de contrato particular de compromisso de compra e venda de lote de terreno. Alegou que devido a dificuldades financeiras, não tinha mais condições de arcar com o pagamento das prestações do imóvel adquirido.

Nesse cenário, pediu a rescisão do contrato com a respectiva condenação da construtora a restituir 80% do valor total das parcelas pagas, e com o valor de mercado referente à construção residencial lançada sobre o lote.

A construtora contestou e apontou a responsabilidade da compradora por possíveis passivos incidentes sobre o imóvel, até a efetiva desocupação. Pontuou a necessidade de fixação de indenização pela fruição no percentual de 1% do valor contrato ao mês.

Impugnou o pedido de indenização pelas benfeitorias, além de má-fé na construção levada a efeito sobre o imóvel. O juiz determinou perícia sobre o valor do imóvel.

Com o laudo, o magistrado sentenciou. Esclareceu, em primeiro lugar, que a respeito da possibilidade de rescisão do contrato a pedido do comprador, as cláusulas de irrevogabilidade e irretratabilidade não afastam tal direito. No âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) o assunto foi resolvido mediante a edição da Súmula nº 1, que prevê: “O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios”.

Acessão inversa

Apesar do pedido de rescisão, o juiz entendeu que deve ser acolhida a tese exposta pela construtora quanto à aplicação do instituto da acessão inversa. “E no ponto, abro parêntese, para afastar a alegação de inovação processual na tese aventada, uma vez que somente após a conclusão da perícia e fixação final do valor das benfeitorias é que foi possível verificar a presença dos requisitos ensejadores do referido pleito. Outrossim, vige em nosso sistema o princípio iura novit curia; desse modo, uma vez que houve contraditório [a afastar decisão surpresa] possibilitando que a parte contrária se manifestasse a respeito da tese jurídica fazendo uso de seu direito de convencimento do Juízo, não se aventa no caso hipótese de nulidade”.

De acordo com o parágrafo único do artigo 1.255 do Código Civil, ocorre a aquisição por acessão inversa, sob pagamento de indenização fixada judicialmente, na hipótese em que a construção exceder consideravelmente o valor do terreno. Entretanto, não basta este único requisito objetivo.

A lei impõe que um requisito subjetivo, que é o da boa-fé daquele que construiu.

Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização.
Parágrafo único: Se a construção ou a plantação excede rconsideravelmente o valor do terreno, aquele que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo”.

Construção de casa mais cara

No caso concreto, o juiz entendeu estar presente a hipótese da construção suplantar consideravelmente o valor do terreno. O laudo pericial apontou que o valor da construção é de R$ 479.580,70.

De outro lado, o valor contratual do lote é de R$ 130 mil para pagamento à vista. “Assim, ainda que possa eventualmente ter havido alguma alteração mercadológica no respectivo valor, ainda assim se estaria frente a hipótese em que o valor da construção excedeu em muito o do terreno, sendo praticamente quase o triplo daquele”.

Diante do caso, o juiz viu ser aplicável a regra do artigo 1.255, parágrafo único, do Código Civil, por entender que houve boa-fé do comprador. “Ao contrário do alegado, não há se cogitar em má-fé, posto que aquele que adquire lote de terreno o faz [na grande maioria dos casos e à vista da presunção da boa-fé] com objetivo de utilizar-se da terra para erguer uma construção e, então, poder fruir do imóvel”. Além do mais, diz a sentença, que inexiste fundamento legal a impor o condicionamento da construção à quitação do contrato, assim como elementos a denotar que o inadimplemento não foi premeditado ou intencional.

De um lado, o juiz considerou que a reintegração de posse é condicionada à restituição pelas construções, mostra-se excessiva a imposição do desembolso de um valor que suplanta em mais que o dobro do valor do terreno. De outro, também ponderou não poder desconsiderar que a rescisão acarretaria a fixação de indenização pela ocupação em prol da construtora, “o que evidentemente acarretaria igualmente ao autor um custo elevado em vista do tempo de uso e que seria compensado com as acessões”.

Assim, a solução primária (rescisão e reintegração) demonstrou não ser boa opção prática a nenhuma das partes contratantes. Diante de toda a exposição, foi aplicada a acessão inversa, impondo-se, em contraprestação, a fixação da indenização judicial na forma do artigo 1.255, parágrafo único, parte final, do Código Civil.

“A lei não traça critério, apenas aponta que a indenização pela aquisição do terreno deve ser fixada pelo Juiz. No caso concreto, entendo que a situação se equaciona de maneira que a indenização devida pelo núcleo autor à requerida/loteadora deve equivaler ao débito em aberto informado no relatório […]. Ante o exposto, julgo improcedente a ação e o faço para manter o compromisso de compra e venda, reconhecendo a acessão inversa e a condenando a autora ao pagamento de indenização correspondente ao valor do débito em aberto informado”. Cabe recurso.

Foto: Freepik

Renata Reis é jornalista, escreve para o Diário de Justiça e integra a equipe do podcast “Entendi Direito”. Formada em jornalismo, atuou em jornal diário, em outros meios, como rádio e TV. Também prestou serviços de comunicação em assessoria, textos para revistas e produção de conteúdo para redes sociais.

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