Muitos brasileiros ficam na grande expectativa da Mega-Sena da Virada para, quem sabe, ser o mais novo milionário ou, então, melhorar de vida com que o dinheiro pode pagar. Parte dos apostadores participa de bolões, o que pode ampliar as chances. Por outro lado, caso estes bilhetes sejam os premiados, é sempre necessário agir com muita transparência e até assistência, seja de contabilidade ou jurídica, pois muita gente não sabe que, a depender da forma de divisão dos valores, existem tributos. E este foi o cerne de uma discussão que parou na Justiça, de participantes de um bolão contra o que ficou responsável pelas apostas, e teve sentença publicada no fim do mês passado.
Um grupo de ganhadores da Mega-Sena da Virada de 2017/2018, de Embu-Guaçu (SP), moveu uma ação anulatória de contrato contra um homem. Após a entrega dos volantes preenchidos, 17 bilhetes foram premiados e o valor líquido para cada um dos bilhetes atingiu a marca de R$ 18.042.279,04.
Naquele ano, 4 apostas ganhadoras foram de São Paulo, sendo três bilhetes dos autores da ação, do réu nesta ação e de outras pessoas.
Os autores descreveram que 160 pessoas participaram do bolão e ganharam o prêmio líquido de R$ 54.126.837,12, resultando para cada o valor de R$ 336.191,53. No entanto, o homem que ficou responsável pela aposta informou que efetuaria o repasse dos valores aos 160 ganhadores, condicionando o pagamento ao comparecimento obrigatório no escritório do contador e de sua advogada.
Os autores foram informados que receberiam o valor de R$ 294.454,06 porque seriam retidos R$ 12.268,92, a título de ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer Bens ou Direitos). O valor restante, de R$ 29.468,55, seria repassado posteriormente, sem considerar, ainda, que deveria efetuar a assinatura de instrumento particular de doação, que nada mencionava sobre o valor remanescente de R$ 29.468,55.
Foi apontado que os autores são pessoas simples e não tinham entendido sobre a retenção do valor do ITCMD, incidindo em vício de consentimento, até os dias de hoje, e não receberam o valor de R$ 29.468,55. Por isso, o pedido na ação foi de anulação dos instrumentos de doação, reconhecendo que a cota de cada autor corresponde ao valor de R$ 336.191,53, com a condenação do homem ao pagamento do valor de R$ 29.468,55, salvo no caso de três autores indicados, declarando-se a inexistência de doação e da incidência tributária, com a condenação à devolução do valor de R$ 12.268,92.
Versão do responsável pela aposta
O homem apresentou contestação e sustentou que o recebimento dos valores ocorreu em janeiro de 2018 e os pagamentos aos apostadores deram-se dias após, afastando-se qualquer alegação de demora proposital. Disse que todo o procedimento foi realizado de forma transparente e sem qualquer manobra, esclarecendo que, para fins de declaração do imposto de renda, o requerido, incumbido de receber o prêmio, por ter registrado o seu CPF, não poderia simplesmente efetuar transferências bancárias com o rateio dos valores.
Segundo a contestação, cogitou-se a elaboração de doação por meio de escritura pública. No entanto, o procedimento oneraria ainda mais os participantes em razão das taxas de cartório, sem contar a incidência do ITCMD, sendo que a opção se deu pelo meio menos oneroso, reafirmando que, além do tempo decorrido da assinatura dos negócios jurídicos, os autores não são pessoas sem instrução, possuindo conhecimento sobre o significado do termo quitação e ITCMD.
Ele informou, ainda, que os autores receberam minuciosas explicações sobre a negociação e as vantagens decorrentes e também que, ao final, ao identificar uma sobra de valores, efetuou novo rateio no valor de R$ 1.840,33 para cada apostador com a retificação do termo de doação. Para ele, houve má-fé por parte dos autores da ação.
A sentença
O caso foi julgado pelo juiz Willi Lucarelli, da Vara Única de Embu-Guaçu. O magistrado ponderou sobre o que diz o Código Civil sobre instrumentos jurídicos, boa-fé objetiva, princípio da confiança, dolo, dolo acidental, entre outros. “No caso em exame, analisando os documentos trazidos com a inicial e a contestação, denota-se que todos os autores receberam o valor líquido de R$ 294.454,06, mediante transferência bancária, após o desconto do valor do ITCMD no importe de R$ 12.268,92, por conta do contrato de doação firmado, sendo certo que, posteriormente, receberam mais R$ 1.840,33, em razão da sobra de valores, tendo sido elaborado ‘aditivo ao instrumento particular de doação'”, inicia a sentença.
“Ora, tendo-se por base os critérios de interpretação do negócio jurídico acima referidos de que somente aquele erro substancial e o dolo essencial teriam o condão de viciar a livre e consciente manifestação de vontade, é possível concluir que esse modelo de negócio jurídico concebido após o sorteio da loteria, indiscutivelmente, foi pretendido pelos envolvidos, sendo certo que contou com manifestação de vontade livre e consciente dos autores e do requerido […]. É dizer, revela-se absolutamente razoável a alegação de que a realização do instrumento de doação seria opção mais vantajosa financeiramente, sendo certo que é fato notório que o modelo, de fato, corresponde aos usos e costumes desse tipo de negócio, encontrando guarida no inciso II do §1º do artigo 113 do Código Civil”.
O magistrado verificou que o instrumento de doação foi efetivamente cumprido e recebeu, posteriormente, aditivo contratual, contemplando as sobras de valores, a indicar que a natureza do negócio foi confirmada pelo comportamento das partes após a celebração do negócio. “De mais a mais, inexiste qualquer prova de que tenha havido erro essencial ou dolo durante a assinatura do instrumento de doação e seu aditamento, ao menos com relação à essência do negócio jurídico celebrado. A esse respeito, a prova oral, que é central para questões envolvendo o vício do consentimento, não trouxe elementos seguros no sentido de demonstrar não ter se tratado de vontade livre e consciente. Muito pelo contrário […]”.
Diversas pessoas foram ouvidas. “Portanto, as provas produzidas indicaram que o cerne principal do negócio jurídico celebrado é válido e observou o princípio da boa-fé objetiva e, principalmente, da confiança, porquanto tudo está a demonstrar que os apostadores confiaram na figura do requerido para guardar e ratear o dinheiro recebido do prêmio da loteria”.
Pelos documentos analisados, inexiste qualquer nulidade a sanar. “Na verdade, o máximo que se pode admitir, seria a ocorrência, em casos pontuais, em função da simplicidade de alguns vencedores, de equívocos quanto ao entendimento sobre o cálculo dos valores, principalmente aqueles relacionados à diferença entre o valor líquido e o bruto do rateio”, diz o juiz. No entanto, o artigo 143 do Código Civil é expresso ao estabelecer que “o erro de cálculo apenas autoriza a retificação da declaração de vontade”, afastando-se, sob essa ótica, qualquer anulabilidade total do negócio jurídico.
Por outro lado, o homem reteve parte do rateio por conta de despesas com a contabilidade ou com o escritório de advocacia e, conforme o juiz, deveria ter declarado o motivo determinante de forma expressa, o que não ocorreu, devendo arcar, a partir daí, com a sua omissão, ao menos para os fins do presente feito. “Desse modo, inegavelmente, o requerido induziu a erro os autores, viciando esse aspecto da avença, de forma que, uma vez acolhidos os argumentos de cálculo do requerido quanto à diferença entre o valor bruto e líquido, é o caso de reconhecimento do vício do consentimento”.
O caso foi julgado parcialmente procedente apenas para condenar o responsável pelas apostas e rateio ao pagamento a cada um dos autores do valor de R$ 23.792,20. Todos deverão pagar as custas processuais e honorários advocatícios.
Cabe recurso.
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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