Direito Penal em obras de ficção: Batman, justiceiros e o exercício arbitrário das próprias razões

por Marina Lessa Cavalieri 

Há dois meses estreou nos cinemas de todo o mundo o filme The Batman, que conta a história dos primeiros anos de atuação do vigilante sombrio nas ruas de Gotham City.

Como descreve a própria sinopse do novo longa-metragem de um dos heróis mais famosos da DC ComicsBatman se estabelece como a única personificação de vingança entre os seus concidadãos e se vê no dever de “fazer justiça ao abuso de poder e à corrupção que há muito tempo assolam Gotham”.

No entanto, para além da diversão e frenesi dos aficionados por personagens de histórias em quadrinhos, poderia existir, aos olhos do Direito em uma sociedade moderna, a figura de um justiceiro que se autointitula ser a personificação da Vingança?

Não é um conceito novo no universo de obras ficcionais, sendo que personagens como o Homem Morcego tendem a causar admiração e identificação com o público insatisfeito com a suposta impunidade do mundo real. 

Entretanto, as condutas praticadas pelos denominados heróis da ficção estão longe de serem consideradas legalmente aceitas no meio social. Isso, porque, em resumo, conforme leciona Guilherme Nucci “o monopólio de distribuição de justiça é estatal, não cabendo ao particular infringir tal regra de apaziguamento social” [1]

Ocorre que nem sempre foi assim. Na evolução histórica do Direito Penal, há o que se convencionou por chamar de “vingança privada”, que posteriormente evoluiu para a “vingança pública”, como formas de reação da comunidade contra pessoa que cometesse alguma prática tida por infracional. 

No entanto, sabe-se que a famigerada “justiça pelas próprias mãos”, sob o critério de Talião – olho por olho, dente por dente -, nunca teve sucesso, pois não passava de uma outra forma de agressão e extermínio, muitas vezes praticada contra famílias e clãs inteiros.

Com o passar de muitos séculos da sociedade em constante evolução jurídica, sociológica e filosófica, em 1764, é publicada a obra “Dos Delitos e das Penas”, de Cesare Beccaria, fixando um marco na história do Direito Penal e configurando o nascimento da chamada Escola Clássica. A obra rompe com o conceito vingativo, intimidador, sádico e cruel da pena em si, trazendo o Princípio da Proporcionalidade da Pena à infração praticada.

Além disso, “Dos Delitos e das Penas” insurgiu-se contra a tortura como método de investigação criminal e instituiu o Princípio da Responsabilidade Pessoal, de forma que as penas não mais atingissem os familiares do infrator.

Séculos depois, em terras brasileiras, há o advento do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal Brasileiro, que se encontra em vigência até os dias atuais. 

De forma totalmente contrária aos inúmeros filmes e séries que contam com protagonistas vigilantes e justiceiros, como o Batman, o Código Penal traz em seu art. 345 o tipo do exercício arbitrário das próprias razões, que consiste em “fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”.

O tipo penal tem como sujeito passivo o Estado e, secundariamente, a pessoa contra a qual se volta o agente que, por conta própria, decidiu imbuir-se do papel de “fazer justiça”. Isso porque, conforme já mencionado, o monopólio de distribuição de justiça é estatal, ou seja, cabe ao Estado julgar as práticas tidas como criminosas e aplicar as respectivas punições.

Sobre o tema, inclusive, em julgado recente da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Ministra Laurita Vaz, Relatora do Recurso Especial (REsp) nº 1.860.791/DF, votou de forma a concluir “ser suficiente, para a consumação do delito do art. 345 do Código Penal, que os atos que buscaram fazer justiça com as próprias mãos tenham visado obter a pretensão, mas não é necessário que o Agente tenha conseguido efetivamente satisfazê-la, por meio da conduta arbitrária. A satisfação, se ocorrer, constitui mero exaurimento da conduta” [2].

Portanto, seguindo a linha doutrinária que dispõe sobre a natureza formal do crime de exercício arbitrário das próprias razões, por unanimidade de votos, os ministros da Sexta Turma do STJ negaram provimento ao Recurso Especial ao entenderem que, “praticados todos os atos executórios, consumou-se o delito, a despeito de o Recorrente não ter logrado êxito em sua pretensão, que era a de pegar o celular de propriedade da vítima, a fim de satisfazer dívida que esta possuía com ele” [2].

A verdade é que, desde atos visando satisfazer dívidas até mesmo buscando vingança por meio de torturas e práticas cruéis, são registrados no Brasil cada vez mais casos de indivíduos que buscam fazer justiça pelas próprias mãos. Essas pessoas não usam capas nem cinto de apetrechos, mas assim como os personagens das histórias em quadrinhos, acreditam que tais atos arbitrários são justos, mesmo quando tipificados como conduta criminosa no Código Penal.

Em conclusão, estes cidadãos, aos olhos do Poder Judiciário, não são muito diferentes do Batman ou de qualquer outro protagonista de obras de ficção: em todos os casos é possível observar que tais indivíduos se socorrem a práticas ancestrais de vingança e conceitos arcaicos de justiça, incorrendo no crime de exercício arbitrário das próprias razões. 

Fonte:

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal, 9ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013 (p.1.116). 

[2] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 1.860.791 – DF (2019/0217804-9). Acórdão disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2019286&num_registro=201902178049&data=20210222&peticao_numero=-1&formato=PDF>. Acesso em: 13 abr. 2022.

Marina Lessa Cavalieri é advogada (OAB/SP 462.394) em Treinta Advocacia (OAB/SP 21.746). Bacharel em Direito pelo Instituto Superior de Ciências Aplicadas – ISCA Faculdades (2020). Cursando pós-graduação em Direito Digital e Proteção de Dados.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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