Direito e Literatura: O feminicídio em Shakespeare – ‘Otelo, o Mouro de Veneza’ e as implicações da violência de gênero

por Joice Pio

Apesar de serem consideradas áreas distintas o Direito e a Literatura possuem conexões profundas e são fundamentais para a compreensão da sociedade. O Direito representa o conjunto de normas e estabelece direitos e deveres, definindo o que é legalmente permitido, proibido ou obrigatório. Além disso, organiza instituições, como o Estado, a justiça e o sistema jurídico, criando mecanismos para a resolução dos conflitos e aplicação das leis. Em sua essência, busca promover a justiça, a paz e o equilíbrio social.

Por outro lado, a literatura se manifesta como expressão artística da linguagem, transmitindo sentimentos, histórias e reflexões. Através de variadas formas e gêneros, os autores exploram temas transcendentais como amor, morte, justiça, liberdade e violência. Além de documentar a realidade e a história de uma sociedade, a literatura provoca questionamentos e reflexões, oferecendo novas projeções sobre o mundo e a condição humana. Dessa forma, ela se torna um catalisador para o desenvolvimento intelectual, emocional e cultural, promovendo o conhecimento e influenciando o pensamento e a cultura de diferentes épocas e contextos.

Partindo dessas breves considerações, percebe-se que o direito e a literatura se inter-relacionam profundamente, como se observa nas narrativas literárias com temas jurídicos, na crítica social, na linguagem e na retórica, e até mesmo na própria dissertação jurídica. Para muitos, essa conexão pode parecer desafiadora, mas, afinal, não são a sociedade e as relações humanas igualmente complexas?

Entre os autores passíveis de abordagem para exemplificar a conexão entre as áreas, este artigo se concentrará na contribuição de William Shakespeare, dramaturgo e poeta inglês dos séculos XVI e XVII. Suas obras abrangem tragédias, comédias e sonetos. Ele escreveu cerca de 38 peças de teatro, 154 sonetos e dois longos poemas narrativos, abordando temas como amor, traição, poder, ambição e a natureza humana. Em suas obras, o autor utilizou uma linguagem rica e expressiva, com personagens e temas atemporais. Dentre suas principais contribuições, podem ser mencionadas as tragédias Hamlet, Rei Lear, Macbeth, Otelo e Romeu e Julieta.

O estudo das obras de Shakespeare nos convida a uma profunda reflexão sobre questões complexas que transcendem épocas e culturas. Embora seja impossível esgotar a análise de sua obra em um único artigo, o presente texto se propõe a demonstrar a conexão entre direito e literatura, tomando como exemplo alguns trechos das obras do autor, em especial a tragédia Otelo, o Mouro de Veneza, e as implicações da violência de gênero e do feminicídio.

Em uma de suas peças, William Shakespeare aduz:

‘A lei é como uma teia de aranha; os grandes passam, os pequenos ficam presos’.

Sem analisar a obra como um todo, e apenas interpretando esta frase, percebe-se a complexidade da natureza humana e a forma como as leis, criadas por e para os homens, podem ser manipuladas para beneficiar alguns em detrimento de outros.

Na obra Medida por Medida, encontramos os seguintes fragmentos:

“A justiça, como a mercadoria, tem o valor do preço que se paga por ela”

“A lei deve ser como a morte, que não poupa ninguém.”

A primeira afirmação critica as distorções da justiça no contexto social e político, sugerindo que ela é tratada como mercadoria, sujeita às influências econômicas e de poder, permitindo que aqueles com mais recursos manipulem os benefícios de forma injusta. Na segunda afirmação, questiona-se como a lei deveria ser implacável e imparcial, assim como a morte, que atinge a todos sem distinção. Ambas as reflexões destacam a vulnerabilidade das instituições jurídicas frente às desigualdades sociais.

 As obras de William Shakespeare retratam seu tempo sob sua ótica, mas permanecem atemporais. As injustiças apresentadas em suas obras ainda são atuais. Lamentavelmente, vivemos em uma sociedade desigual, marcada por crimes e circunstâncias inquietantes.

Dentre os crimes que, infelizmente, presenciamos, podemos destacar o feminicídio. Os dados do ano passado revelam um aumento alarmante no número de casos, caracterizados por extrema violência e crueldade. Essa questão está profundamente enraizada em uma cultura que normaliza a violência de gênero e se acentua pela desigualdade social e pela ausência de políticas públicas eficazes.

A literatura, muitas vezes, espelha a realidade. Na tragédia shakespeariana Otelo, o Mouro de Veneza, conta a história de Otelo, um general mouro a serviço da República de Veneza. Otelo é casado com Desdêmona, filha de um nobre veneciano, o que provoca a inveja de Iago, o alférez de Otelo, que acredita ter sido preterido em favor de Cássio, um jovem oficial. Iago, movido por ciúmes e rancor, começa a manipular Otelo, fazendo-o acreditar que Desdêmona o trai com Cássio.

Através de intrigas e enganos, Iago semeia a dúvida na mente de Otelo, que se consome pelo ciúmes e, eventualmente, mata Desdêmona. Quando a verdade vem à tona e Otelo descobre que foi enganado, ele se desespera e, tomado pela culpa, tira sua própria vida. A obra explora temas como ciúmes, traição, poder, racismo e o impacto da manipulação emocional.

A fim de melhorar o entendimento, algumas expressões devem ser destrinchadas. Uma delas é ‘mouro’. Historicamente, o termo se referia a um líder militar de origem muçulmana. No entanto, no contexto de ‘Otelo, o Mouro de Veneza’, a expressão ‘mouro’ adquire conotações específicas, pois Otelo é de origem africana e sua identidade é marcada pela diferença racial e cultural em relação aos venezianos, que o veem com preconceito. Apesar de ser estrangeiro e muçulmano, Otelo ocupa uma posição de alto comando nas forças militares de Veneza, o que era algo incomum na época.

Outra expressão utilizada na obra é ‘alférez’, que se refere a um posto militar, geralmente abaixo de tenente, sendo um oficial subalterno que serve sob o comando de um superior. No caso de Iago, ele é um alférez nas forças militares de Veneza e serve diretamente sob o comando de Otelo, o general da força.

A tragédia apresenta um retrato cru da manipulação e da violência doméstica, evidenciando um problema que, infelizmente, persiste na atualidade. A obra é baseada em mentiras criadas por Iago, um personagem que busca atingir seus objetivos a qualquer custo. Dessa forma, Otelo é ingenuamente manipulado e, ao final da trama, assassina sua esposa, Desdêmona, acreditando na falsa certeza de que ela foi infiel. Convencido de que precisava proteger seus valores absolutos, Otelo cede à violência. Nesse contexto, ao entrelaçar o direito com a obra shakespeariana, busca-se compreender a persistência do feminicídio, pois, assim como Desdêmona, milhares de mulheres ainda são vítimas de seus parceiros.

A seguir algumas citações da obra que refletem o contexto de violência:

“Ela me traiu, e eu a matarei.” (Otelo)

“Iago: O que? Tu a amas? Então, deves odiá-la também. Pois, se a amas, por que a casaste? Se a amas, por que a deixas viver?” (Ato III, Cena III)

Mas é fatal que morra; do contrário, vida ainda a enganar mais outros homens (Ato V)

Tanto as frases acima quanto a obra revelam inúmeras nuances. A afirmação ‘Ela me traiu, e eu a matarei’ é emblemática da construção social que associava a honra masculina à posse e ao controle sobre as mulheres. Outro ponto crucial é o abuso psicológico sofrido por Otelo. Manipulado por Iago, que alimentou suas inseguranças e ciúmes, Otelo foi induzido a acreditar em uma traição sem provas concretas. Essa forma de violência psicológica, ao minar a confiança da vítima em si mesma e em sua parceira, o levou a cometer atos extremos.

Ademais, a tragédia destaca o impacto devastador da violência, principalmente sobre Desdêmona. A personagem, inocente e apaixonada, é vítima de um crime bárbaro que a priva não apenas da vida, mas também de sua dignidade. Seu assassinato, motivado por uma falsa honra e pela manipulação de Iago, revela a periculosidade da violência doméstica e as profundas consequências sociais e psicológicas desse ato.

As obras shakespearianas, como ‘Otelo’, representam um vasto universo literário e nos convidam a uma imersão profunda no universo humano, revelando a complexidade das relações de poder e as consequências da violência. A tragédia serve como um espelho para a sociedade, refletindo as profundas raízes da violência de gênero e a urgência de transformarmos os padrões sociais que a perpetuam. Ao desvendar os mecanismos de manipulação e ódio que levaram a esse trágico desfecho, somos impulsionados a agir, a denunciar a violência. Que o legado de Shakespeare continue a inspirar gerações futuras em todas as lutas que representem desigualdade e formas de opressão.

Joice Pio é advogada, membro da Comissão de Direitos Humanos na 35ª Subseção de Limeira – OAB/SP.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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