por Felipe Rissotti Balthazar
A audiência de custódia foi implantada no Brasil em 24 de fevereiro de 2015, sob coordenação do Conselho Nacional de Justiça. Seu objetivo é garantir que toda pessoa presa em flagrante seja apresentada a um juiz no prazo máximo de 24 horas, em uma audiência na
qual também são ouvidos o Ministério Público, a Defensoria Pública ou o advogado particular, quando constituído.
Sua implementação está prevista em tratados e pactos internacionais de direitos humanos, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, ambos internalizados pelo Brasil. A constitucionalidade e a obrigatoriedade da medida foram confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar, em 2015, a ADI 5240 e a ADPF 347. Desde 2019, a audiência de custódia encontra-se formalmente prevista no Código de Processo Penal.
Nessa audiência, o juiz deve avaliar a prisão sob os prismas da legalidade e da regularidade do flagrante, bem como da necessidade e da adequação da sua continuidade. A depender do caso concreto, é possível inclusive a aplicação de uma ou mais medidas cautelares diversas da prisão.
Apesar de sua previsão normativa e respaldo constitucional, a audiência de custódia ainda é alvo de críticas que se distanciam da realidade fática. No Brasil, circula — e se vende — a ideia de que sua implementação seria uma das principais responsáveis pela impunidade, pois supostamente os juízes mais concedem liberdade aos custodiados do que os mantêm presos.
No entanto, em sentido contrário a essa narrativa bem construída e disseminada no senso comum, os dados oficiais indicam outra realidade. Segundo informações do CNJ e do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, desde a implementação das audiências de custódia até fevereiro de 2025, foram realizadas aproximadamente 2,2 milhões de sessões. Em dados recentes, em 52% dos casos a prisão preventiva foi mantida; em 47,6%, concedida liberdade provisória; e em apenas 0,4% determinada a prisão domiciliar.
Dentro dessa estatística, observa-se também a predominância de alguns tipos penais: tráfico de drogas (24%), furto (13%), violência doméstica (7%), crimes envolvendo armas de fogo (6%) e infrações de trânsito (5%).
Quanto ao perfil social dos custodiados, o dado é tão claro quanto desconfortável: ele escancara a seletividade penal do Estado. A maioria das pessoas custodiadas são homens jovens, negros ou pardos, que não trabalham nem estudam. Atualmente, mais de 37 mil
declararam ser dependentes químicos.
Outro dado relevante, por traduzir em números os chamados “casos isolados” de truculência estatal, refere-se aos relatos de tortura e maus-tratos, registrados em 7% das audiências da última década — o que corresponde a quase 154 mil casos. Por fim, destaca-se um dos dados mais relevantes: o percentual de pessoas que, após receberem liberdade provisória em audiência de custódia, voltaram a ser apresentadas à Justiça por novos crimes no mesmo ano. Segundo levantamento da Defensoria Pública do Estado da Bahia, em 2023, apenas 4,2% das pessoas passaram novamente por audiência de custódia no mesmo ano por novos delitos. Esse percentual tem se mantido abaixo de 7% nos últimos anos, com exceção de 2019, quando atingiu 7,2%.
É fundamental distinguir entre “taxa de retorno” e “reincidência”. A primeira refere-se a indivíduos que, após a soltura, são novamente presos em flagrante e reapresentados em nova audiência de custódia. Já a reincidência pressupõe condenação definitiva anterior, seguida de nova infração penal.
E o que, afinal, esses dados nos ensinam?
Os dados nos revelam uma verdade incômoda: quando a análise é séria, técnica e baseada em evidências, a audiência de custódia revela-se um instrumento essencial para a garantia de direitos e contenção de abusos no sistema de justiça penal. Eles demonstram que a maioria das prisões em flagrante resulta em prisão preventiva e que a concessão de liberdade provisória não está associada a altos índices de reincidência. Além disso, o perfil dos custodiados escancara a necessidade urgente de políticas públicas voltadas ao enfrentamento das desigualdades sociais e raciais que permeiam, estruturalmente, o sistema penal.
Em tempos em que a emoção clama por punição imediata, a audiência de custódia é um lembrete de que o Estado de Direito deve prevalecer sobre o clamor da multidão.
Felipe Rissotti Balthazar (@rissottifelipe) é advogado criminalista.
Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar
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