por Marco Milani
A declaração recente do Vice-Presidente da República, Geraldo Alckmin, proferida durante uma reunião com empresários em São Paulo, sugerindo que o Banco Central do Brasil deixasse de considerar os preços dos alimentos e da energia no cálculo oficial da inflação, levanta uma série de preocupações técnicas, econômicas e institucionais. Segundo ele, esses itens distorceriam a percepção da inflação, criando um retrato irreal da economia nacional. A proposta, no entanto, revela uma incompreensão sobre a função e a estrutura dos índices de preços ao consumidor e desconsidera as especificidades da realidade brasileira, além de comprometer a credibilidade das instituições que atuam na formulação da política monetária do país.
No cerne do argumento apresentado está a ideia de que os preços dos alimentos e da energia seriam voláteis demais para compor o índice oficial de inflação, pois estariam sujeitos a oscilações pontuais, sazonais ou externas, como choques de oferta climáticos ou geopolíticos. Em analogia, o Vice-Presidente referiu-se aos índices utilizados nos Estados Unidos, como o Core CPI (Consumer Price Index – núcleo do índice de preços ao consumidor) e o Core PCE (Personal Consumption Expenditures Price Index – núcleo do índice de gastos com consumo pessoal), que de fato excluem os preços de alimentos e energia em suas versões “core”. No entanto, a comparação é inadequada quando se propõe que esses indicadores substituam o índice de inflação oficial utilizado no Brasil para guiar a política monetária, definir metas e balizar reajustes salariais e contratuais.
Nos Estados Unidos, os índices “core” são utilizados como ferramentas auxiliares para análise de tendências inflacionárias de médio e longo prazo. Eles ajudam o Federal Reserve a isolar a chamada inflação subjacente, ou seja, aquela que resulta de pressões estruturais mais persistentes na economia, excluindo ruídos de curto prazo que alimentos e energia possam introduzir. No entanto, nem o Core CPI nem o Core PCE substituem os índices cheios (headline), que continuam sendo monitorados e divulgados. Mais importante ainda, a política monetária do Fed leva em consideração o PCE cheio como sua principal referência, mesmo utilizando o núcleo como instrumento analítico.
Transferir essa lógica diretamente para o Brasil sem as devidas adaptações revela uma falha de entendimento conceitual e empírico. O índice de inflação oficial brasileiro, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), calculado pelo IBGE, é desenhado para refletir o custo de vida da população em geral, captando o comportamento de uma cesta ampla de bens e serviços consumidos pelas famílias com renda entre 1 e 40 salários mínimos. Dentro dessa cesta, os preços dos alimentos e da energia elétrica ocupam papel central, não apenas por seu peso estatístico – que gira em torno de 25% a 30% do total – mas porque afetam diretamente o orçamento das camadas mais vulneráveis da população. Ignorar esses preços no cálculo da inflação comprometeria a função essencial do índice, que é representar a realidade do consumo das famílias brasileiras.
Propor que o Banco Central deixe de considerar esses itens em sua avaliação da inflação também deslegitima o sistema de metas de inflação vigente no país desde 1999. O regime de metas pressupõe a transparência e a previsibilidade da atuação da autoridade monetária, com base em um índice público, amplo e representativo, no caso o IPCA. A política monetária é desenhada para ancorar expectativas e garantir a estabilidade de preços, protegendo o poder de compra da moeda, sobretudo para os mais pobres. O uso de um índice que exclui alimentos e energia colocaria em risco essa função, podendo gerar distorções na percepção pública, nas negociações de salários e contratos e na própria eficácia da política de juros.
Além disso, a proposta desconsidera que os preços dos alimentos e da energia, embora mais voláteis, possuem impactos duradouros sobre a inflação. Choques nos preços de alimentos podem ter efeitos inerciais, propagando-se por outros setores da economia. A energia elétrica, por sua vez, é insumo básico de praticamente todas as cadeias produtivas, e seus reajustes influenciam direta e indiretamente uma ampla gama de preços. Portanto, retirar esses itens do índice oficial não elimina sua influência sobre a dinâmica inflacionária real.
É importante destacar que o Banco Central do Brasil já utiliza, como parte de seu arsenal analítico, diversas medidas de inflação subjacente, incluindo núcleos que excluem alimentos e energia, bem como medidas de inflação suavizada ou filtrada. No entanto, essas ferramentas são complementares e não substituem o índice oficial. O Comitê de Política Monetária (Copom) as utiliza para entender melhor os vetores da inflação, mas a meta de inflação é estabelecida com base no IPCA cheio, por razões de representatividade e transparência. Alterar isso por decisão política sem base técnica minaria a confiança do mercado, dos agentes econômicos e da população nas instituições responsáveis pela estabilidade econômica.
A ideia de que o índice atual da inflação cria uma imagem irreal da economia não se sustenta. O que se busca com o IPCA não é suavizar as percepções, mas registrar fielmente as oscilações do custo de vida. As oscilações nos preços de alimentos e energia fazem parte da realidade vivida cotidianamente pelas famílias brasileiras, sobretudo as de baixa renda, para quem o impacto de aumentos nesses itens é proporcionalmente maior. Ignorá-los seria ignorar justamente aqueles que mais sofrem com a inflação.
Marco Milani é economista. Pós-Doutor pela Universidade de Salamanca (Espanha). Professor da Universidade Estadual de Campinas.
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