A periferia passada a limpo

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

Este escriba costuma dizer que a arte é a manifestação da vida e da história da Humanidade. A ideia de que durmo, sonho, acordo e a inspiração para uma obra cultural aparece, do nada, é romântica e utópica. A arte e a criação derivada dela são o reflexo da matéria, daquilo que o ser humano produz em sua trajetória, seja como individuo, seja no coletivo. E ela se desenvolve no meio em que se vive, onde as relações socioeconômicas, políticas e culturais ocorrem.

Não há fato, episódio, que brote do nada, que não tenha explicações lógicas. Mesmo as de credo, é preciso elaborar sua fé com argumentos concretos dos porquês acreditar em Deus, deuses e até no ateísmo.

A arte, portanto, é dialética, surge com a história igualmente dialética e apresenta contradições que a matéria costuma produzir. O hip hop não é apenas um ritmo musical, ele é um movimento, tem metas, objetivos e uma história que constroem a partir do concreto do que se vê e se sente.

Quando meninos do Bronx, bairro de periferia de Nova York, descobriram a batida perfeita, como gosta de frisar o rapper Marcelo D2, ela não veio do artificial, do que não se enxerga. A África, a música negra, do blues, do jazz, da soul music, deram a base sonora para aquela garotada do subúrbio da maior cidade do mundo.

Mas não só.

A vida dura de pobreza, racismo e violência do Bronx, foi decisiva para se criar uma linguagem de resistência e de luta por uma vida melhor de inclusão social e de tornar sonhos realidade. Esta resistência criou o movimento, alicerçado em quatro elementos culturais, como frisa o MC Digo Nesta, da Black 90: música com os MCs/DJ, a dança, a poesia e o grafite.

Mas, como dissemos acima, não foi por acaso. Houve uma coleta de informações do que se fazia na periferia, em especial como viviam os pobres e negros nas regiões esquecidas pelo vil metal.

No Brasil, o estouro do hip hop vai acontecer nos anos 90 do século passado, chegando em Limeira, em particular o bairro Cecap, um dos mais esquecidos pela ganância do capital.

Nas ruas e calçadas do enorme bairro residencial, adolescentes negros e pobres, tendo Racionais MC como uma das principais influências, escreviam em papel de pão de padaria versos rimados contando o que viviam naqueles dias.

Desemprego, fome, o mundo das drogas, a segregação racial, o abandono, o se sentir invisível, tudo fazia parte das letras, da poesia que entravam na batida feita nas calçadas da Cecap. Cada um foi ter que cuidar da vida ou se envolver em outros projetos.

Até que um dia, Digo, já citado aqui, e Barba Jah, seu mano de sangue, resolveram juntar a turma daqueles tempos e voltar a fazer um som. Surge Zumbi ou Brown, canção que vence o FestiAfro de 2017 em Limeira e apresenta a Black 90, uma reunião de MCs que vão, a partir dali, não só resgatar o início de tudo, mas atualizar os quatro elementos para este momento difícil de nossa história, onde o fascismo busca exterminar primeiro, os pobres, os invisíveis.

E depois daquela vitória no Festival, quatro anos de batalhas árduas, como buscar recursos, enfrentar uma pandemia, o primeiro álbum da Black 90, está na praça. O título é exatamente “Os invisíveis”, pois é assim que a sociedade de consumo trata os sem-casa, sem-terra, sem emprego, que sofrem a violência das drogas e dos órgãos de segurança.

Ouvi o disco inteiro, várias vezes. A emoção tomou conta deste velho sonhador. Um filme das ruas da Cecap e das periferias da cidade vieram à tona nas letras dos rappers.

Os bailes blacks do Funcionários, Clube do Galo, Estudantes e do Grêmio Recreativo, onde a molecada da quebrada se reunia, ao som e música preta, como dizia Tim Maia, estão ali nas canções. A realidade nua e crua da periferia de Limeira, a luta contra o racismo e a violência decorrida dele estão lá nas canções.

O fascismo que insiste em se instalar no poder também é denunciado. São quinze faixas, autorais, várias inéditas, onde desde os versos, passando pelos arranjos, é criação coletiva.

Destaco aqui as faixas: Vagaróides, Segue o Baile, Fake News, Zumbi ou Brown, Doses de Ódio, Sistema Parte 1, participação dos rappers OKZO, Bark e Rodrigo Short, Abrigo e Perigo na sociedade. A sonoridade é música negra. Tem rap, tem funk e suas vertentes, tem pop, tem blues e até umas levadas de jazz.

Um dos lançamentos mais importantes deste primeiro semestre de 2021. Show!

PS: abaixo o disco completo:

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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