por Mayuli Hancz
A desigualdade financeira é um marco que assola o território brasileiro desde os anos 2000. No Brasil, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 1% da população mais rica concentra cerca de 28,3% da renda total do país, considerado campeão mundial em desigualdade. No entanto, a Justiça de maneira alguma deve conter uma lacuna na igualdade.
Apesar da Lei nº 1.060/50 existir, a assistência judiciária gratuita tornou-se um direito popular frente à Constituição Federal de 1988, através de uma cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV c/c 5º, LXXIV). Ou seja, tornou-se um direito incontestável, fundamental e de aplicação imediata.
Tanto a assistência gratuita como a gratuidade à Justiça são abrangidas por esse direito. A assistência pode ser realizada pela Defensoria Pública ou advocacia dativa. Já a gratuidade, envolve todas as despesas acerca daquele direito exercido, sejam elas taxas, custas, honorários advocatícios ou periciais, depósitos recursais, etc.
Apesar do hiato legislativo, o Judiciário entende que a hipossuficiência econômica possui uma presunção relativa. Para alguns, necessita apenas de uma declaração, e para outros, necessita de uma comprovação concreta de que o sujeito não possui condições econômicas para utilizar do benefício constitucional.
Não obstante de ser um direito constituinte, o mesmo foi criado para equilibrar a desigualdade financeira de acesso à Justiça. Não quer dizer que apenas os hipossuficientes podem ter acesso, mas que mesmo os desamparados economicamente possam exercer seus direitos.
O Judiciário necessita de arrecadação para manutenção. Essa arrecadação é obtida exatamente com o recolhimento das taxas e custas processuais. Vai contra o próprio sistema a isenção permanente destes pagamentos, o que torna evidente que uma pessoa com recursos financeiros altos possa arcar com os custos processuais sem prejudicar sua realidade monetária.
O benefício serve para todas classes monetárias. Existe teto máximo? Precisa ser comprovado em quais situações? Como supracitado, não há previsão expressa que a hipossuficiência precisa ser comprovada. Mas então qualquer pessoa pode ter acesso ao benefício da Justiça Gratuita? Não!
Vejamos. Pessoas que recebem até dois salários mínimos (o salário mínimo de 2024 é de R$ 1.412) são enquadradas nas classes C, D e E, sendo consideradas hipossuficientes economicamente. Porém, somente essa condição não basta para uma concessão imediata. O recebimento monetário pode ser comprovado através do holerite (em caso de registro em carteira), cópia de Carteira de Trabalho (em caso de desempregado) ou comprovante de Declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física – DIRPF (em caso de trabalho autônomo). Assim, esse primeiro nicho da hipossuficiência é exclusivo para a condições monetárias da pessoa.
O segundo nicho é delimitado nas classes A, B e C. Pessoas que recebem mais que R$ 2.824, podem ter acesso à Justiça Gratuita? Sim! No entanto, há exceção para essas classes. Por exemplo, uma pessoa que reúne um rendimento mensal de R$ 12.000 (aproximadamente 8 salários mínimos) pode ter dívidas, doença, contas mensais, etc. A Justiça Gratuita, neste caso, pode ser justificada com o gasto mensal em remédios, acompanhamento profissional, pagamento de dívida, pensão alimentícia, alimentação, moradia e/ou transporte.
Até mesmo uma pessoa que declara uma fortuna de R$ 1.000.000 pode estar com seus bens bloqueados, diante de uma decretação de falência da sua empresa, por exemplo. A pessoa não pode deixar de ter acesso à Justiça em nenhuma hipótese, mas deve respeitar os óbices determinados pelo Legislativo e aplicados pelo Judiciário para que haja uma limitação deste benefício, justamente pela manutenção constante da estrutura Judiciária como um todo.
Uma prova de hipossuficiência pouco exigida pelo Judiciário são os extratos bancários do requerente do benefício. Os extratos são essenciais para a decretação da hipossuficiência. O próprio requerente pode apresentar espontaneamente ou o Juiz pode determinar de ofício a quebra do sigilo bancário e oficiar as instituições para apresentação dos extratos. No referido documento, haverá indicação exata do valor recebido, transferido ou pago. Praticamente todas as informações que o Juízo precisa saber estão ali inseridas.
O que se pode dissertar é que não há legislação expressa de como a hipossuficiência pode ser de fato comprovada, o que faz com que o Judiciário tenha que arbitrar conforme seu líbito, diante das circunstancias apresentadas em cada caso.
O que o Código de Processo Civil diz a respeito? O Legislativo destinou uma seção (IV) somente para essa matéria do direito processual. Conforme o referido código, a gratuidade pode ser total, parcial ou facilitada (art. 98, § 5º e 6º).
Avaliando a situação econômica do requerente, o Magistrado pode conceder o benefício de forma integral, abrangendo assim, todo e qualquer tipo de condenação sucumbencial, custas e despesas derivadas do processo; parcial, quando entender o Juízo que a parte pode sucumbir parte das despesas, como por exemplo, o requerente estará isento das custas processuais, mas não de eventual condenação sucumbencial em honorários; e, por fim, a concessão facilitada, ou seja, o requerente poderá suportar todas as despesas, custas e sucumbências do processo, desde que de forma parcelada ou somente ao final do processo.
É importante esclarecer que a Justiça Gratuita não abrange eventual condenação principal que o requerente venha sofrer com a prolação da Sentença. Ademais, a concessão do benefício não torna o sujeito hipossuficiente de forma definitiva. Da mesma forma que o benefício pode ser requerido a qualquer tempo (art. 99 e § 1º), o mesmo também pode ser revogado a qualquer tempo, dentro do prazo de cinco anos do trânsito em julgado da decisão (art. 98, §3º).
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin foi cirúrgico quando explicou:
“Do art. 12 da Lei 1.060/1950 extrai-se o entendimento de que o beneficiário da justiça gratuita, quando vencido, deve ser condenado a ressarcir as custas antecipadas e os honorários do patrono vencedor. Entretanto, não está obrigado a fazê-lo com sacrifício do sustento próprio ou da família. Decorridos cinco anos sem melhora da sua situação econômica, opera-se a prescrição da dívida. (…). 9. Portanto, o benefício da justiça gratuita não se constitui na isenção absoluta das custas e dos honorários advocatícios, mas, sim, na desobrigação de pagá-los enquanto perdurar o estado de carência econômica do necessitado, propiciador da concessão deste privilégio. Em resumo, trata-se de um benefício condicionado que visa a garantir o acesso à justiça, e não a gratuidade em si.”
Localizando elementos que demonstram uma melhora financeira na condição do beneficiário, o agora Exequente, pode apresentar ao Juízo a qualquer tempo (dentro do prazo prescricional), através de petição simples. Todavia, será garantido ao beneficiário o direito de ampla defesa e contraditório, com posterior análise do Juízo.
Conclui-se, portanto, que apesar de ser um direito garantido constitucionalmente e por possuir uma Lei específica (nº 1.060/50) com complementação no Código de Processo Civil, a concessão da Justiça Gratuita não obedece a uma regra expressa, sendo flexibilizada por meio da comprovação, que tão pouco é exigida, eis que não há rol taxativo que trate do assunto.
A Justiça é para todos! No entanto, enquanto perdurar a desigualdade econômica entre a população nacional, as hipóteses de concessão da Justiça Gratuita devem ser respeitadas e certificadas pelo Judiciário, através da comprovação expressa pela parte de que não há suficiência monetária para arcar com o acesso à Justiça, pelos menos enquanto perdurar a lacuna legislativa.
Mayuli Hancz é advogada no Rücker Curi – Advocacia e Consultoria Jurídica.
Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar
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