A extinção dos povos indígenas

Por Ronei Costa Martins Silva

Eu nasci pelas mãos de uma parteira indígena, da tribo Terena, em Dourados, interior do Mato Grosso do Sul. Esta talvez seja a razão germinal pela qual nutro profunda gratidão, respeito e admiração pelos nativos desta terra, legítimos brasileiros.

A partir deste lugar que ocupo levanto uma voz crítica ao governo Bolsonaro que tem disparado diversos atentados contra os povos indígenas. A munição dele, entretanto, é revestida de um verniz enganoso que pode comprometer nosso entendimento sobre a gravidade da situação.

Logo no alvorecer de seu governo ele disse que daria o título de propriedade (escritura) das reservas indígenas aos índios, para que, querendo, pudessem vendé-las. Atualmente as reservas indígenas são protegidas por lei e não podem ser comercializadas (um obstáculo para o agronegócio).  Semanas depois disparou que “índios em reservas são como animais em zoológicos”, demonstrando total insensibilidade, agressividade, falta de respeito e desconhecimento sobre a vida dos povos indígenas.

A princípio, para nós que não estamos familiarizados com a cultura dos povos da floresta, a proposta de venda das reservas indígenas parece sedutora. Infelizmente não é e pior: a hipótese de comercialização das reservas, diante da vulnerabilidade das aldeias frente ao mercado do agronegócio, resultará inevitavelmente no êxodo dos povos da floresta para as cidades.

Para nós que somos urbanos este êxodo pode não parecer tão grave, mas se deitarmos nosso olhar para a cultura indígena, notaremos que trata-se de um etnocídio.

Os nativos se relacionam com a floresta de forma cultual, orgânica, holística e simbiótica. Tudo está interligado, não existindo, portanto, a hipótese de se pensar índios sem floresta, um e outro são partes de um todo inseparável.

Vindo para as cidades, os índios, que estão nas florestas bem antes de os europeus aportarem suas naus gananciosas aqui, ficarão impossibilitados de manter seu patrimônio intangível (costumes, vida, cultura). Serão dizimados pela voraz cultura ocidental que transforma tudo em mercadoria. Já a floresta vendida ao agronegócio também será mercantilizada e, de acordo com o vetor do lucro, poderá ser eliminada ao sabor dos ventos do capital, basta que a soja seja mais lucrativa que a floresta. Para realçar suas intensões, Bolsonaro disse, no mesmo discurso, que iria acabar com a “farra” das multas do IBAMA, sobre os desmatamentos. Vimos a divulgação de um pacote com plano completo.

Recentemente um delegado da Policia Federal foi punido por ter indiciado seu ministro do meio ambiente.

Sem a floresta os ameríndios serão forçados a migrar para as cidades. E como não foram adestrados para viver nos moldes da sociedade ocidental e capitalista eles sofrerão morte lenta e gradual. Vejamos, por exemplo, o aspecto do mundo laboral: para os índios o trabalho é para a sua subsistência, de seus parentes e da tribo em geral. Trabalham para se alimentar, se vestir, ritualizar e se abrigar do sol e chuva. Não precisam estocar grandes quantidades de alimentos em celeiros imensos. Trabalham apenas para garantir sua vida e a vida da comunidade. Para os nativos da floresta não existe o sentido de “lucro”, sob a qual nós, povos dito civilizados, estamos submetidos, como a um deus magno. Desse modo, eles podem trabalhar apenas uma pequenina parcela do dia e no restante podem fazer festa, jogar, brincar, educar seus descendentes, fazer seus cultos religiosos, dormir, enfim, podem viver em função da vida. Além do mais é preciso destacar que para a cultura indígena, o trabalho não está desvinculado da celebração e das festividades, tudo está interligado e obedecendo uma lógica holística. Imaginem então um índio sendo convidado a trabalhar numa indústria 8 horas por dia, 5 dias por semana? Obviamente ele não compreenderá. E nós, do alto da nossa incapacidade de compreender o outro e sua cultura sentenciaremos: é preguiçoso.

Em 2011 passei uma semana na Amazônia. Pude conhecer duas aldeias indígenas e uma comunidade quilombola. Lá diante da expulsão de dezenas de aldeias indígenas de suas terras originárias, devido ao alagamento de extensa planície por conta das represas das usinas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, o cacique do Cintas Largas clamou: “Se um parente meu sofre de alguma doença, eu sei onde está a árvore cuja casca feita um chá curará meu parente. Quando alguém da nossa tribo morre ele vai morar no leito do rio, lugar sagrado no qual repousam nossos antepassados. Nossa relação com a floresta é de tradição milenar, de culto e devoção. Retirar nosso povo da floresta é leva-lo à extinção.”

Bolsonaro ignora tudo isto. Desaparelhou a FUNAI, atropelou as reservas indígenas e quer dizimar os povos da floresta.

Em respeito à memória da minha parteira e em respeito aos povos originários desta terra, não posso concordar com as atitudes deste senhor que infelizmente preside o país

Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista.

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