Por Ronei Costa Martins Silva
Empresto o poema do Carlos Drummond de Andrade e peço licença para, parodiando-o, batizar este artigo. Invés do término da festa, sugerido originalmente pelo poeta, ouso propor a mudança do sujeito da estrofe: a eleição acabou, e agora José?
Definido os eleitos, os do primeiro e agora os vencedores do segundo turno, resta uma indagação retórica: estamos quites com as nossas obrigações? Se do ponto de vista pragmático a comprovação de que votamos satisfaz as exigências legais e nos permite, por exemplo, prestar concurso público ou solicitar emissão de passaporte, do ponto de vista do exercício da cidadania participar do escrutínio não basta.
Ao longo do tempo, em função dos inúmeros acidentes sociais, fomos convencidos de que a eleição possui certos poderes mágicos, assim, escolhendo adequadamente os mandatários teríamos os nossos problemas resolvidos. Olhando para os planos de governo de todos os candidatos e assistindo aos debates dá, de fato, esta impressão. A sensação é a de que os candidatos, sem exceção, possuem as soluções para todos os nossos problemas.
O fato é que, por uma razão ou outra, acabamos escolhendo algumas pessoas para nos governar. Entretanto, após a escolha, parece que paira sobre nós um sentimento coletivo de missão cumprida. Com raríssimas exceções, esmagadora maioria de nós hiberna, para despertar somente na próxima missão, digo, na próxima eleição.
Pressinto que injetamos no processo eleitoral uma dose cavalar de paternalismo, substância tóxica oriunda, como sabemos, de nossa herança nacional. E este paternalismo nos faz crer que invés de elegermos governantes, elegeremos pais, que prepararão as nossa refeições e trocarão as nossas fraldas.
É provável que este sentimento coletivo tenha sido captado pelo marketing político, que obriga os planos de governo serem peças sedutoras de ficção, prometendo a sociedade ideal, pois que senão, dizendo coisas possíveis e alcançáveis e cobrando a corresponsabilidade de todos, os políticos mostrar-se-iam humanamente dependentes e frágeis e não agradaria aqueles que procuram um mito, um pai-herói.
Nesta toada, vemos ainda outro impacto negativo: a transferência de responsabilidade. Ao irmos votar, transferimos ao indivíduo eleito a total e absoluta responsabilidade pela construção da sociedade que desejamos. Parece que queremos escolher alguém para ter quem culpar. Não que o eleito não tenha a sua cota de responsabilidade, é óbvio que a tem. O fato é que é uma cota, certamente maior que a do comum cidadão, mas apenas uma cota. E sendo apenas uma cota, quem a detém não pode ser o único responsável pela graça ou desgraça de uma sociedade.
A certa altura o poema de Drummond nos mostra o sujeito lírico perdido, sem encontrar solução diante dos desencantos que há de enfrentar: “Com a chave na mão / Quer abria a porta, / Não existe porta; / Quer morrer no mar, / Mas o mar secou; José, e agora?”
Na encíclica Fratelli Tutti, assinada no último dia 03 de outubro, o Papa Francisco, sugere um bom caminho. Diz ele que “não devemos esperar tudo daqueles que governam, seria infantil.” E ele continua sua reflexão dizendo que “gozamos de um espaço de corresponsabilidade, capaz de iniciar e gerar novos processos e transformações.” Finaliza o sumo pontífice fazendo um pedido: “sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas”
Para sermos ‘partes ativas’ em favor das transformações desejadas, penso que só há um caminho: assumirmos nossa condição de agentes políticos. E aqui não me refiro aos políticos eleitos. Refiro-me a todos os cidadãos que escolhem se engajar na luta em favor do bem comum.
Em seu livro “Política para não ser Idiota”, Mário Sérgio Cortella nos lembra que os predicados ‘idiota’ e ‘político’ surgiram na Grécia antiga para designar dois tipos de habitantes da pólis. O primeiro que se ocupava apenas de seus interesses individuais era chamado de ‘idiotés’. O outro que se ocupava do bem estar da pólis era chamado de ‘polítés’. Assim, conforme a tradição, todo aquele que se preocupa com o bem estar do outro e com o progresso da sociedade é um agente político.
Muito embora as peças publicitárias exaltem o poder e a importância do voto, seria muito cômodo se apenas com nosso voto pudéssemos transformar a sociedade. Acreditar nisto, arrisco dizer, seria uma crença infantil.
Drummond coloca uma questão que se repete ao longo de todo o poema, como um tipo de refrão com força motriz que dá cadência à obra: “E agora, José? Pretensiosamente se eu pudesse sugerir ao eu-lírico, uma saída primeiramente diria que a eleição não pode ser um ato de transferência de responsabilidades, a menos que queiramos ser, nas palavras do filósofo, meros idiotas. E então, após concluído o processo eleitoral que escolheu os mandatários para as nossas cidades, diria que poderíamos também escolher qual seria nossa responsável postura, diante da sociedade.
Nas duas últimas estrofes de seu poema, Drummond nos deixa uma questão: “Você marcha José! / José, para onde?”
Ronei Costa Martins Silva é arquiteto e urbanista e pós graduado em arquitetura e arte sacra. Possui diversas obras de arquitetura sacra espalhadas por São Paulo e outros três estados. Em 2018 foi convidado para presentear o Papa Francisco com uma obra sua, a Cruz da Esperança. Possui onze obras de arquitetura selecionadas para Mostras Nacionais, sendo duas em 2017 e nove em 2019.
Também é pesquisador da máscara do palhaço há 21 anos, tendo atuado em hospitais, presídios e outros espaços de vulnerabilidade social. É pai do Benício.
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