A educação financeira como exercício prático do direito constitucional à liberdade e combate à violência doméstica

por Letícia Francisco Brigatto

Liberdade.
Mais do que apenas um valor, a liberdade é intrínseca ao ser humano, tanto é que a privação da liberdade é a pena mais grave aplicada no Brasil para aqueles que infringem à lei.

A liberdade é indubitavelmente um pilar do estado democrático de direito brasileiro, expresso imediatamente no preâmbulo da Constituição Federal.

Para alguns, a liberdade é também sinônimo de independência, de autodeterminação, e é aqui que encontramos o verdadeiro preço da liberdade.

Fato é que a pandemia gerada pelo COVID-19 impôs o mundo todo à quarentena, medidas de restrição, entre elas de locomoção, forçando a todos que permanecessem em casa durante o maior tempo possível.

Neste contexto, o ser humano viu sua liberdade restrita em níveis nunca antes vistos. E tal restrição gerou graves consequências, como o grande aumento da violência doméstica.

Vale ressaltar que a violência doméstica consiste em cinco espécies principais: física, moral, sexual, financeira ou patrimonial e psicológica.

Em breve síntese, conforme definido pelo instituto Maria da Penha, segundo o capítulo II, artigo 7º, incisos I ao V da Lei Maria da Penha:

Violência física é aquela em que se chega a chamada “vias de fato”, com agressões físicas, maus tratos, abusos, tortura, espancamento, onde há lesão, dor, ferimento;
Violência moral em geral ocorre através da calúnia, injúria ou difamação;

Violência psicológica é aquela que causa abalo psíquico, que fere a autoestima, prejudica ou perturba o pleno desenvolvimento da mulher;

Violência sexual é aquela que força ou constrange a mulher a manter ou presenciar qualquer ato sexual não desejado. Cumpre ressaltar que, ainda que dentro do casamento, a mulher não é obrigada a manter relação sexual, sentir-se obrigada a isso é uma forma de violência;

Violência patrimonial ou financeira é qualquer ação que resulte em retenção, subtração, destruição de qualquer forma de recurso financeiro ou que gere recurso financeiro à mulher, inclusive força-la – ainda que sem violência física – a deixar o emprego, a ser inteiramente dependente do homem, é uma forma de violência;

Inclusive a violência patrimonial é uma das grandes causas que mantém a vítima refém do agressor, sem conseguir se desvencilhar da situação em que se encontra, sem conseguir sair de casa ou mesmo denunciar o agressor, não é raro depender financeiramente, única e exclusivamente do dinheiro que o agressor “traz para dentro de casa”.

De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública durante a pandemia, 1 a cada 4 mulheres acima de 16 anos sofreu algum tipo de violência doméstica nos últimos 12 meses, isso significa que cerca de 17 milhões de brasileiras sofreram algum tipo de violência doméstica no último ano.

Ainda de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública cerca de 4,3 milhões de brasileiras sofreram agressão física durante a pandemia, cerca de 13 milhões sofreram violência verbal neste período; 3,7 milhões de brasileiras sofreram violência sexual, e estes são apenas alguns dados, sem contar as ocorrências que não foram reportadas, inclusive as denúncias foram extremamente dificultadas neste período.

Dentre as inúmeras causas destes tristes dados, que ressalta-se não são apenas números, mas vidas de adultas e adolescentes que sofrem diariamente, de forma mais intensificada agora na pandemia, violência doméstica em suas mais diversas espécies; a grande maioria, 25,1% das vítimas consideram que a perda do emprego e renda, e a impossibilidade de trabalhar e garantir o próprio sustento são os fatos que mais pesaram para a ocorrência da violência que vivenciaram.

Possível dizer que as vítimas consideram que a violência financeira per si, intensificada na pandemia, facilita, pesa mais na ocorrência dos demais tipos de violência doméstica.

Cumpre destacar que as cinco principais espécies de violência doméstica podem ocorrer de forma conjunta ou separada, e, não raras vezes, a violência inicia-se com a psicológica, podendo “terminar” com o feminicídio.

Ou seja, estas mulheres têm sua liberdade tolhida todos os dias, não apenas na restrição imposta pela pandemia, mas também na sua independência, na não opção de sair da casa em que está sofrendo a violência, na impossibilidade, principalmente pela falta de dinheiro de deixar a casa que está colocando sua vida em risco, vez que este ano no Brasil, até o momento, foram registradas oficialmente 1.338 feminicídios, um crescimento de 2%.

Em razão disso é tão importante a educação financeira, aprender a planejar, organizar e cuidar do próprio dinheiro é essencial e salva vidas. Aprender inclusive a gerar renda, mesmo que fora de emprego formal. A educação financeira é o preço da liberdade.

Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (2005), educação financeira é “o processo mediante o qual os indivíduos e as sociedades melhoram a sua compreensão em relação aos conceitos e produtos financeiros, de maneira que, com informação, formação e orientação, possam desenvolver os valores e as competências necessários para se tornarem mais conscientes das oportunidades e riscos neles envolvidos e, então, poderem fazer escolhas bem informadas, saber onde procurar ajuda e adotar outras ações que melhorem o seu bem-estar. Assim, podem contribuir de modo mais consistente para a formação de indivíduos e sociedades responsáveis, comprometidos com o futuro”

O Brasil é um dos poucos países do mundo que possui uma Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), criada para promover ações de educação financeira gratuitas e sem qualquer interesse comercial. A ENEF brasileira é resultado de uma articulação entre 11 instituições de governo e da sociedade civil e, por este diferencial, valoriza ações que integrem a iniciativa privada, a sociedade civil e o governo.

A educação financeira aqui representa o bem essencial vida, constitucionalmente protegido, mas também se mostra inerente ao desenvolvimento do país como um todo, considerando que, com a crise gerada pela pandemia, sendo uma de suas consequências o desemprego em massa, cerca de 19 milhões de brasileiros passaram fome!

A educação financeira não apenas permite que mulheres em situação de violência possam mudar com seus filhos para locais seguros, por não dependerem exclusivamente da renda do agressor, mas também permite que famílias inteiras aprendam a administrar seu dinheiro ao ponto de montar sua reserva de emergência para situações como a pandemia, ocasião na qual, mesmo que viessem a perder o emprego formal, teriam condições de manter-se até encontrarem outra fonte de renda.

Entretanto, infelizmente, apesar de uma iniciativa, da ENEF, tão importante ser gratuita não é divulgada, a esmagadora maioria da população sequer ouviu falar da ENEF.

Tão importante é a educação financeira, tão essencial, tem uma função social tão intimamente ligada com a essência do estado democrático de direito, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3.145/2020 com o intuito de alterar a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir educação financeira no rol dos temas transversais obrigatórios da educação básica, ou seja, no ensino infantil, fundamental e médio.

Inclusive também há um projeto de lei em trâmite na assembleia legislativa do Estado de São Paulo prevendo que a disciplina de educação financeira e finanças pessoais seja inserida nos ensinos fundamental e médio.

Diante de todo o exposto, vê-se que apesar da realidade assustadora em que vivemos, do aumento expressivo dos diversos tipos de violência doméstica principalmente contra mulheres e adolescentes durante a pandemia gerada pelo COVID-19, que aliás, ainda é a atual realidade, uma vez que a pandemia não terminou, apesar dos avanços na vacinação;

O aumento de casos registrados de feminicídio também neste período, ressaltando ainda que só temos os registros dos casos denunciados e registrados, quantos e quantos mais são vividos em silêncio pelas mulheres Brasil adentro.

Apesar de todos esses fatos alarmantes, ainda assim, vê-se um vislumbre, um primeiro passo mesmo que tímido de mudarmos a realidade.

Já reconhecidamente essencial na sociedade, a educação financeira pode não apenas ser o primeiro pilar para melhorar esta realidade, como também mudar todo o âmbito social brasileiro.

A educação financeira fornecida à toda a população, principalmente aos hipossuficientes e, mais do que isso, adequadamente ministrada já na educação básica, ensino infantil, fundamental e médio é sim a forma prática da liberdade, é o exercício da independência, e, como não poderia deixar de ser, uma ótima forma de prevenção aos crimes contra a mulher.

Os números deixam claro, que uma das soluções para começar a reparar os danos da pandemia do COVID-19, neste quesito; uma das formas de garantir o direito constitucional à liberdade, de exercer o valor intrínseco ao ser humano de independência, de prevenir todas as formas de violência doméstica, seja física, moral, psicológica, financeira ou patrimonial e sexual é também a educação financeira.

*Artigo publicado originalmente na Revista Digital da OAB Limeira, edição de julho de 2021

Letícia Francisco Brigatto é advogada, pós-graduanda em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária, graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC, Planejadora Financeira Pessoal. Coautora do artigo “A disjuntiva da definição de família no direito brasileiro contemporâneo: Estatuto da Família versus Estatuto das Famílias”, publicado no livro “Direito Globalizado, Ética e Cidadania – Volume II”, e atuante como membro da Comissão da Mulher Advogada, na 35a Subseção da OAB de Limeira/SP.

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