A CPI da Covid e seus reflexos na conjuntura política

Por Leandro Consentino

Com base no mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru (ambos do Cidadania), a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, abriu caminho para que, nessa semana, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM), fosse compelido a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito naquela casa, com o objetivo de investigar a conduta no governo federal durante a pandemia de covid-19 em território brasileiro.

O processo que levou a essas decisões do Judiciário e do Legislativo, bem como os desdobramentos que devem advir desse processo, serão fundamentais para compreender a conjuntura política no país, com reflexos, inclusive, nas eleições gerais a serem realizadas no próximo ano.

Em primeiro lugar, é preciso ter presente que a própria decisão de Barroso constituiu um enfrentamento com Pacheco que, a priori, não desejava levar adiante a instalação da Comissão, mesmo que essa decisão não fosse de sua competência, diante das 32 assinaturas já apensadas ao documento. O ato de “segurar” a instalação da CPI atendia tanto ao governo federal – foco do pedido impetrado pelo Senado Randolfe Rodrigues (REDE) – bem como ao próprio Pacheco e seus aliados do Centrão, a quem interessava deter uma moeda de troca para ser utilizada quando houvesse necessidade de negociar com o Planalto.

Observada a decisão, o governo federal tentou ampliar o escopo da Comissão, estendendo suas investigações sobre estados e municípios, visando atingir também os adversários de Bolsonaro. Ante este impasse – e a explícita impossibilidade de investigar os estados, expressa no Regimento do Senado Federal – Rodrigo Pacheco adotou a solução de compromisso para governistas e oposicionistas de determinar a instalação da CPI que investigue o governo, mas alcançar também os repasses federais aos estados e municípios para enfrentamento da pandemia.

Em seguida, apesar da relativa vitória do governo na possibilidade de investigar os repasses aos entes subnacionais, o Palácio do Planalto sofreu um novo revés na composição da Comissão. Ao escrutinarmos os onze senadores que assumiram a titularidade da CPI, percebemos uma preponderância de nomes oposicionistas – ou pelo menos, independentes pró-oposição – em suas fileiras: dois deles são declaradamente governistas (o piauiense Ciro Nogueira do PP e o catarinense Jorginho Melo do PL), dois são independentes pró-governo (o rondoniense Marcos Rogério do DEM e o cearense Eduardo Girão do PODE), dois são assumidamente oposicionistas (o pernambucano Humberto Costa do PT e o amapaense Randolfe Rodrigues da REDE), três são independentes pró-oposição (o cearense Tasso Jereissati do PSDB, o alagoano Renan Calheiros do MDB e o baiano Otto Alencar do PSD), além de dois de posicionamento ambíguo (os amazonenses Eduardo Braga do MDB e Omar Aziz do PSD).

A fragilidade do governo diante do fato de não lograr maioria na Comissão levou o governo a pressionar com novas dificuldades para o início dos trabalhos. Diante do esgotamento das alternativas judiciais – sobretudo após o plenário do Supremo Tribunal Federal referendar quase que unanimemente a decisão de Barroso – o Planalto focou-se nas manobras políticas, buscando ganhar tempo para as primeiras reuniões e argumentando que as primeiras reuniões deveriam ocorrer apenas após o restabelecimento das sessões presenciais no Senado Federal.

Para além da discussão sobre a instalação da CPI em formato remoto ou presencial, o comando da Comissão também se torna um importante flanco de disputa, onde os opositores do governo Bolsonaro parecem cada vez mais próximos de conquistar todos os cargos relevantes. Enquanto a relatoria parece migrar quase que naturalmente para as mãos do MDB – provavelmente representado por Renan Calheiros ou Eduardo Braga – a presidência ainda permanece em disputa entre o autor da comissão, Randolfe Rodrigues, o tucano Tasso Jereissati e o pessedista Omar Aziz. Se para a oposição o ideal seria ter Calheiros e Randolfe nestes postos, o governo busca alguma margem de segurança ao fortalecer Aziz e Braga.

Cabe ressaltar que, aqueles que comandarem a Comissão Parlamentar de Inquérito, sobretudo o relator, deverão se basear fortemente nos relatórios produzidos pelo Tribunal de Contas da União que, como órgão assessor do Congresso Nacional, tem demonstrado diversos equívocos na gestão da pandemia durante o governo Bolsonaro, sobretudo durante a gestão do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Como a relação entre Pazuello e Bolsonaro era de profunda sintonia, uma eventual convocação e desgaste do antigo ministro no âmbito da Comissão pode criar profundos embaraços ao presidente da República.

Da mesma maneira que os relatórios do TCU, a própria materialidade trágica da segunda onda da pandemia poderá, por si só, fortalecer os algozes de Bolsonaro na CPI, determinando a ele uma significativa perda de popularidade, principalmente diante do aumento do número de contaminações e mortes pela pandemia, do atraso do ritmo de vacinação e da situação econômica que se agravou sensivelmente neste ano. Tais desdobramentos, aliados ao noticiário negativo de uma CPI em pleno ano anterior às eleições, podem dificultar cada vez mais os planos reeleitorais do presidente, que já sofrem um abalo diante das pesquisas de opinião.

As últimas pesquisas de opinião demonstram um fortalecimento não apenas da candidatura do ex-presidente Lula (PT), mas também dos nomes de centro na segunda volta contra Bolsonaro, determinando que a disputa pode ser menos sobre quem irá ao segundo turno contra Bolsonaro e mais sobre como alcançar um segundo turno sem a presença do atual presidente.

Ainda que com o poder da máquina pública – incluída a proximidade com o Centrão – o Planalto tem consciência de que, para chegar ao segundo turno, precisará manter o apoio de seus eleitores mais fiéis, sobretudo aqueles ligados ao campo ideológico e religioso. Por essa razão, o presidente, quanto mais estiver acuado, mais tenderá a “dobrar a aposta”, promovendo discursos contra as instituições e fazendo ameaças veladas aos demais poderes, patrocinando debates como os do “voto impresso” ou da “intervenção” e decidindo, inclusive, por mudanças de rumos na área de comunicação do governo.

A Comissão Parlamentar de Inquérito que ora se instala pode ser exatamente o palco de enfrentamento que o governo deseja para manter esse clima beligerante, mas as chances de que ela amplie ainda mais o desgaste presidencial não são desprezíveis e, por essa razão, o governo tentou, a todo custo, evitá-la. Apenas o fato de ela ter sido instalada, já constitui uma derrota que, nesse contexto, pode ser a primeira de muitas para Bolsonaro.

Leandro Consentino é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Ciência Política pela mesma instituição. Atualmente, é professor de graduação no Insper e de pós-graduação na FESP-SP.

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.

error: Conteúdo protegido por direitos autorais.