A atemporalidade de Belchior

Por João Geraldo Lopes Gonçalves

No próximo domingo, eleitores de 53 cidades acima de 200 mil eleitores irão às urnas escolher novos prefeitos para o exercício que se inicia em janeiro de 2025. É o segundo turno dos pleitos, incluindo aí São Paulo (capital) e minha cidade Limeira.

Um dia antes, comemora-se o aniversário de um dos artistas mais importantes da história da música e das artes brasileiras.

Falo de Antonio Carlos Gomes Belchior Fonteneles Fernandes, nascido em Sobral, Ceará. Nós o conhecemos apenas como Belchior.

O artista vai pro céu depois de desaparecer do cenário, em 2017. Mas seu legado está muito vivo nos corações e mentes de todos nós. O bigode é cantado em verso e prosa por muitas gerações: de Fagner, passando por Daira e Ana Canãs e terminando nos meninos “Pessoas Cinzas Normais”.

Sua obra une seus conhecimentos em filosofia e teologia (Belchior foi capuchinho), mas especialmente em sua própria experiência de vida.

Ele nunca deixou de admitir que sua vida se confundia com a vida dos latino-americanos, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes.

Viveu literalmente nas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo, feito um migrante passou fome e frio como ele mesmo alertou na canção Fotografia 3×4. O conjunto de sua obra nos remete ao compromisso do autor com o seu tempo.

Embora suas canções foram escritas em um contexto de ditadura militar, a atemporalidade delas hoje é fragrante e necessária.

A partir de agora, vamos fazer um exercício de encaixe de frases nos tempos atuais.

Pegamos frases das canções de Belchior e as refletimos diante do quadro atual no Brasil e no mundo.

Espero que leiam ouvindo as canções.

“Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi: amigo, eu me desesperava” (Trecho de A Palo Seco, de 1974).

No contexto em que a letra foi elaborada, baseada em um poema de João Cabral de Melo Neto, ela nos leva a pensar. Enquanto alguns como o narrador da obra sabia exatamente o que acontecia no Brasil da ditadura a maioria apenas sonhava viver dias melhores.

Além disto, a crítica também se estende aos alienados, seja com o discurso mentiroso dos militares ou da realidade nua e crua que pedia reação e luta. Não difere do quadro atual.

Nestas eleições, a maioria das pessoas optou por se manifestar votando nas fake news, em discursos fundamentalistas e em ações violentas, enquanto uma minoria escolhe enxergar o real.

 “E as aparências, as aparências não enganam, não” (Trecho de Como Nossos Pais, de 1976).

Aqui podemos dizer se tratar de uma referência ao livro Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. A teoria do homem cordial, que prefere viver de aparências ao reconhecer a realidade, se encaixa perfeitamente nos dias atuais.

A linha de negar o óbvio, de dar valor aos costumes e desqualificar valores, a escolha pelo machismo estrutural aliado a violência, funciona como um escape do mundo real.

Se muitos saíram do armário, a postura continua de ser o que não devia ser.

”A gente se olha, se toca e se cala e se desentende no instante em que fala” (Trecho da canção Na Hora do Almoço, de 1974).

Aqui Belchior fala que as aparências são derrubadas quando a família nuclear se reúne. Como se fossem completos estranhos, vomitam pensamentos um do outro ao abrirem a boca para falar.

O compositor trabalha a repressão daqueles tempos que se reproduzia nas famílias consideradas padrão – papai, mamãe, filhinhos.

Esta concepção autoritária volta com força, questionando a pluralidade e a liberdade sexual e de opção. A família nuclear cada vez mais se deteriora, pois ela aponta por caminhos autoritários e machistas.

“Buscar o amor sem vitória, voltar feliz, sem memória” (Trecho da Canção Amor e Crime, de 1993).

Aqui Antonio Carlos busca novamente discutir a questão das aparências. Viver na ilusão do vil metal ou de uma vida de expertises do “pagando bem, que mal tem?” e outras.

Hoje no Brasil, a ideia da lei de Gerson, que significa levar vantagem em tudo, retorna com muita força. As aparências continuam valendo neste contexto.

“Tentar o canto exato e novo que a vida que nos deram nos ensina” (Trecho de A Voz da América, de 1978).

Belchior sempre colocou a juventude como protagonista da história da América Latina. Aqui ele convoca a todos ao novo e revolucionário. Enaltece o canto como grito de luta e o que vem dele o novo.

A vida é o campo de aprendizado. Infelizmente, a atualidade mostra uma juventude sem perspectivas, mergulhada na ideia de tirar vantagem de situações com discursos reacionários e conformistas.

“A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria” (Trecho de Fotografia 3×4, de 1976).

Belchior, como a maioria dos migrantes que vieram ao sul maravilha, comeu o pão que o diabo amassa. Viveu nas ruas e sofreu toda a sorte de preconceitos e violência.

Este quadro de massacre aos nossos irmãos nordestinos e migrantes volta com muita força assustadora. O bolsonarismo é quase um braço armado destes atos racistas e xenófobos.

”A vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior” (Trecho de Eu sou apenas um Rapaz Latino Americano, de 1976).

Este foi o primeiro sucesso popular de Belchior. Uma canção que denuncia a alienação da juventude daqueles tempos duros de ditadura militar. Enquanto o pau literalmente agia nos porões, nossos jovens viviam uma realidade paralela.

O fundamentalismo utilizado atualmente age através do negativismo e falsas pautas de costumes como uma droga alucinante. Fugir da realidade se apegando a discriminações ao diferente é exatamente fazer o jogo do capital predador e explorador.

Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer”. (Trecho da canção Velha Roupa Colorida, de 1976).

O compositor, embora fosse realista, não deixava de apontar perspectivas de mudanças. Pensar a década de 70 no Brasil e na América Latina e estar em contato com o autoritarismo, perseguições e mortes.

Apenas um País não estava sob ditaduras e a maioria apontava para destinos de sangue e lagrimas. Optar nos dias atuais para o retrocesso que nega a pluralidade, a diversidade e o respeito às pessoas e suas escolhas é o perigo de uma sociedade de totalitarismo.

Belchior nos aponta a necessidade de uma mudança.

“E no escritório em que eu trabalho e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor” (Trecho da canção Paralelas, de 1975).

Aqui o cearense faz a critica ao cidadão que se preocupa com o vil metal, mas que percebe que é infeliz.

Nos dias de hoje, a frase “pagando bem, que mal tem?” continua a saga de não se preocupar com os outros ao redor, nem tão pouco consigo mesmo.

Este exame de consciência na letra nos remete ao contexto daquela época, em que tudo de mal acontecia, como miséria, fome, torturas, desaparecimentos e morte.

“Amar e mudar as coisas me interessam mais” (Trecho da canção Alucinação, de 1976).

Para encerrar, uma das frases mais significativas do cancioneiro nacional. O amar acima de qualquer ideologia, doutrina ou pregação. E amar com o objetivo claro de mudar as coisas.

Belchior rejeita o ódio e a violência como forma de vida. Os tempos em que vivemos são bem bicudos. Mas o amor universal que une a todos pode ser a força de mudanças.

A todas, todos e tudex, um bom fim de semana. Não deixem de exercer a cidadania. Vote no domingo.

João Geraldo Lopes Gonçalves, o Janjão, é escritor e consultor político e cultural.

Os artigos assinados representam a opinião do(a) autor(a) e não o pensamento do DJ, que pode deles discordar

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